A ideia de fim de mundo que nos ronda
Uma abinha a mais com novas impressões sobre a enchente 2024
Aviso: a periodicidade da news não está seguindo cronograma. Aceitei me presentear a escrita quando o ímpeto vem forte. Bem-vindas, bem-vindos e bem-vindes, novos inscritos.
Primeiro, o que ficou faltando do Clube:
Fiz três perguntas a Andréa Berriell sobre Suja, o livro que o Clube de Leitura Escuro Medo debateu em abril.
I.B. A gente sempre pensa o fim do mundo como algo coletivo. O fim, entretanto, pode ser individual. Quando se encontram, Gloria e Suja (personagens de Suja) estão enfrentando seus fins. Gostaria que você comentasse os fins e os recomeços das duas.
A.B. O fim é sempre individual. Nascemos sozinhos, e morremos sozinhos. Nossas diversas mortes (durante a vida) são solitárias, ainda que tenhamos a sorte de viver cercados de amigos e amores. Até as pequenas mortes, que são os orgasmos, mesmo quando compartilhados com alguém, são um voo solitário. Estamos sempre sozinhos no gozo mais profundo e intenso. Glória vive o fim do casamento e muitas outras perdas relacionadas aos filhos e à sua própria sobriedade. Suja (a cachorra) é atropelada, depois vamos descobrindo todas as suas perdas anteriores ao encontro das duas. Elas estão sozinhas e quebradas (nos mais diversos sentidos) e o encontro não é fácil, não é limpo nem bonitinho. Só nos encontramos de verdade com o outro se estivermos dispostos a nos sujar, a sairmos do conforto, a molhar os pés no pântano. Os arcos das personagens (seus recomeços como você chamou) acontecem nas fricções desse relacionamento. Sabemos que não é fácil se relacionar, ainda mais quando estamos quebradas, no fundo do poço. Mas algo nelas se move na direção da vida. A amizade é um tipo de amor, amor de salvação.
Suja, de Andréa Berriell (disponível na versão kindle)
I.B. Ainda sobre fim, a presença de Emerson representa uma transição (entre mundos). Emerson é o ser sobrenatural da história. Ele aparece como uma espécie de juiz que decide quem fica e quem deve partir, ao mesmo tempo em que luta com outra dicotomia, que é o ser racional X o ser animal.
A.B. Emerson é o selvagem sobrenatural, e também é o homem branco que figura no topo da cadeia alimentar, e é o ânimus no sentido Junguiano, de força implacável com a qual só há duas formas de se relacionar: (1) desconhecendo sua força e sendo destruída por ela ou (2) unindo forças e superando as adversidades. O personagem é um dos mais complexos. Eu mesma, como autora, me surpreendi muitas vezes com as atitudes dele: no início não demonstra sentimentos mais elevados do que sua própria fome. É um predador. Após conhecer Glória, passa a se comportar “bem” como a irmã, Helena. Decide mudar a maneira com que se alimenta, e se comporta como um juiz. Caçando apenas assassinos e abusadores, Emerson e Helena tentam aplacar a culpa por sua própria natureza. A luta é cheia de dor, de sofrimento, como durante o nascimento de uma criança ou de uma estrela. Usei De Profundis, de Oscar Wilde, na epígrafe do Suja para reforçar a característica do renascimento. A outra epígrafe é de Caninos Brancos (Jack London), e fala do cão-lobo que arreganha os dentes quando se sente acuado, e que aprendeu a agir rápido, matando seus adversários antes que eles tivessem tempo de rasgar sua pele. A luta tem a ver com a própria sobrevivência. Nisso, Emerson, Glória e Suja se parecem.
I.B. É impossível não falar em tragédia ambiental. Meu texto de hoje fala, até porque sou diretamente atingida. Te convido a comentar um pouco sobre as cracas e essa conexão humanidade / natureza que parece perdida?
A.B. O ser humano é o único animal que defeca sobre a água que irá beber. Somos seres angustiados e primitivos demais. Desejamos ter, ter, ter. Todos nós. E na medida em que conquistamos algo, nos sentimos entediados e desejamos mais. A tragédia ambiental que atingiu o Rio Grande do Sul nos últimos dias é o retrato da nossa incompetência em diversas escalas: 1-) global e nacional (destruindo as florestas); 2-) regional (negligenciando as cidades, as necessidades dos agrupamentos populacionais); e 3-) individual (descuidando do “nosso quintal” e consumindo demais). Todas essas esferas são políticas. Precisamos eleger representantes que compreendam esse cenário e estejam dispostos a mudar. Na esfera individual, precisamos garantir mais área permeável no solo, construir telhados verdes, implantar jardins de chuva etc. Na esfera regional, os gestores precisam pautar como prioridade a preservação das margens dos rios; é muito diferente o comportamento da água sendo drenada por um solo aerado por raízes de árvores e micro-organismos e a mesma água tentando entrar no solo impermeabilizado por asfalto, calçadas ou o solo nu das encostas. Quando não há vegetação, a água abre seu caminho à força, erodindo o solo e assoreando os rios. Ou seja, precisamos agir na pequena escala dos nossos lares: mesmo quem mora em condomínios de casas ou prédios, precisa verificar se os 25% (no mínimo) de área permeável estão sendo respeitados. Pensar em alternativas para que as cidades sejam mais "porosas". O conceito de cidades-esponja tem mais de vinte anos e pode nos ajudar a vislumbrar um futuro mais resiliente. A água precisa encontrar o caminho até os reservatórios subterrâneos e até os rios. O tempo é a grande questão: os telhados verdes desaceleram a chegada das águas até as galerias de águas pluviais, os jardins de chuva e os parques são projetados para serem inundados e depois absorver lentamente a água. Mesmo se estivéssemos em dia com todas essas questões na esfera individual e regional (o que está longe de ser verdade), o volume de chuva no Rio Grande do Sul foi muito acima do normal, como efeito direto da incompetência nas escalas global e nacional. Quando as demais escalas estiverem em dia, aumentaremos a nossa resiliência às catástrofes. E, com o tempo, e muito trabalho individual e coletivo, poderemos mudar o cenário e as nossas perspectivas de sobrevivência. Como arquiteta e urbanista, tenho uma visão técnica muitas vezes, necessária ao trabalho. Como escritora de ficção ecofeminista, trago o tema ambiental de maneira mais livre, simbólica, alegórica: no primeiro capítulo do Roxo, por exemplo, uma tragédia acontece por causa do envenenamento de uma lagoa por agrotóxicos; no Suja, as cracas são a mitologia que criei para sustentar a história daquela família. As cracas são purificadoras, são filtros naturais. A água do mar é rica e misteriosa, mas também frequentemente atacada por nosso lixo. As cracas remetem à estruturas porosas, capazes de receber, conter por um tempo e devolver a água, desacelerando o processo, como as cidades-esponja. As cracas são estruturas inteligentes, uma força calcária, cuja arquitetura é capaz de subverter o tempo.
Andréa Berriell é escritora, arquiteta, professora da UFPR e ecofeminista
Uma abinha a mais
Os desdobramentos da inundação (RS/2024)
Na semana seguinte à inundação, outros tópicos dominaram meus interesses.
Refugiada climática, escutei a classificação com certa desconfiança. Sou do noroeste do estado do Rio Grande do Sul, passei a infância e parte da adolescência presenciando as enchentes do Rio Uruguai, e ouvindo histórias a respeito da fúria das águas. Posso dizer que entendo um pouquinho da natureza das enchentes, das casas preparadas para alagarem e desalagarem conforme o rio incha e desincha. Na sexta, dia três, deixei minha casa ruminando a palavra flagelada.
Refugiada climática veio uns dias depois. Na minha região, os homens se animavam com a cheia do Uruguai. Alardeavam, como quem alardeia uma grande aventura, que teriam bastante serviço. Algumas lembranças que guardo coincidem com a primeira vez que assisti ao filme E o vento levou, por isso comparo esses homens do rio, ávidos por aventura, aos mocinhos alistados no exército sulista norte-americano. Para quem não conhece, o filme é baseado no livro homônimo de Margaret Mitchell, e trata com certa condescendência a ingenuidade dos caipiras que habitavam o sul escravocrata dos Estados Unidos.
Sistema de vasos comunicantes, o segundo tópico que me dominou, é um princípio da Física, e eu tendo a gostar das exatas porque elas são… exatas. O pragmatismo das ciências exatas não permite muitas linhas de negociação, e isso a torna uma ciência quase oposta às humanas.
Certezas geram confiança. Buscamos certezas, especialmente em épocas em que experimentamos o auge do desespero. Passei um tempão brigando com o muro do Trensurb porque, afinal, foi o tal muro que represou a água no bairro. O princípio dos vasos comunicantes explica que o nível da água é sempre o mesmo: alaga antes nas partes mais fundas, depois se alastra para os lugares mais rasos, e então sobe devagar, como um todo. Agarrei-me aos vasos comunicantes para acalmar o stress. Assim que o nível do alagamento atingisse o topo do muro do Trensurb, a água transbordaria para dentro dos trilhos. A Física (além da própria natureza) me tornavam confiante: não há a menor possibilidade do nível subir de um lado só. (Bom, naquela altura eu acordava no meio da noite e achava possível qualquer coisa). Também no meio da noite eu me imaginava nos trilhos do trem, marreta em punho para derrubar o muro. A água escoaria contra mim, uma reação perigosa demais, em especial porque viria com a força de uma massa gigantesca represada. Mudança de planos, melhor marretar do lado contrário. Como? Com um traje de mergulho, talvez. A Física, de novo, se impunha. A força de atrito embaixo d’água é bem maior que a da resistência do ar. Não sei a que horas da madrugada eu desistia dos planos. Melhor derrubar o muro assim que a água baixar.
Repique, o terceiro tópico, eu não ouvia desde a infância. É quando o rio, após baixar uns centímetros, volta a subir por conta de novas chuvas que enchem as cabeceiras. Em geral, o repique vem em intensidade menor. No caso do Guaíba/2024 foi diferente. Com mais chuvas nos vales do Taquari, Sinos e Jacuí, a previsão era de um repique com alta superior aos cinco metros e meio.
Adoeci, tive febre, náusea e um resfriado que se estende até hoje. Segui o conselho da amiga escritora Gabriela Leal, saí das redes sociais, tentei achar um remédio que me fizesse dormir. Foi impossível, pelo menos três vezes por dia eu espiava alguma coisinha. Mordi metade das mucosas das bochechas enquanto verificava a página da Agência Nacional das Águas e tentava calcular quanto faltava para o segundo andar da casa ser atingido. A fé nas exatas, por mais controverso que isso fosse, seguia por um fio.
O repique foi menor, o princípio dos vasos comunicantes se provou e só então relaxei. É agora, pensei, não há mais previsão de chuvas fortes. O estrago está feito, o que perdemos, perdemos. Posso voltar a dormir. Vem alegria, me toma, me leva, deixa eu comemorar meus livros e documentos salvos!
A alegria não veio, nossas emoções estão se lixando para as ciências exatas. Assim que o Guaíba voltou a baixar, um tremendo desânimo me abateu. E de novo me vi direcionada ao filme E o vento levou.
Scarlet O’Hara, após enfrentar estradas perigosas, retorna para casa (a fazenda Tara). É noite, ela não consegue perceber o tamanho da destruição. Na porta, seu pai a recebe. A mãe acabou de morrer, na sala principal ninguém vela seu corpo. Na cozinha, Scarlet encontra um restinho de uísque numa garrafa. Bebe. O pai a adverte “vai acabar se embriagando”. Scarlet responde “é o que mais preciso no momento”. (OBS: esse diálogo está no filme).
E o vento levou (1939)
Tem dois contos que reli nesse período que chamarei de aquático.
La casa inundada, de Felisberto Hernandez, conta a história de um escritor que vai visitar Margarita, uma viúva que mora numa casa que mandou inundar. Os passeios que os dois fazem ocorrem num barco a remo que circunda casa, e é nesses momentos que o escritor tenta descobrir as motivações da viúva.
“Ella no quiere que tiren papeles ni ensucien el piso de agua. Del comedor al dormitorio de la señora Margarita no hay puerta y una mañana en que se despertó temprano vio venir nadando desde el comedor un pan que se le había caído a mi mujer. A la dueña le dio mucha rabia y le dijo que se fuera inmediatamente y que no había cosa más fea en la vida que ver nadar un pan.”
A luz é como a água, de Gabriel García Márquez, conta a história de dois irmãos que navegam sobre um facho de luz que escapa de uma lâmpada quebrada da sala.
“No banheiro flutuavam as escovas de dentes de todos, os preservativos do pai, os potes de cremes e a dentadura de reserva da mãe, e o televisor da alcova principal flutuava de lado, ainda ligado no último episódio do filme da meianoite proibido para menores.”
Últimas informações: a água baixou. Hoje vou olhar o tamanho do estrago. Até o final desta semana devo ajeitar o cronograma da leitura de Frankenstein.
Besitos.
Papo incrível entre duas gigantes. Vocês deveriam criar um podcast juntas.
Irka teu pragmatismo é maravilhoso. Mesmo no meio dessa dança macabra do elementos naturais e intervencionistas tu consegues equilibrar a pulsão de vida e criação de uma maneira incrível. Como sempre amei teu texto. Torcendo muito para os vasos comunicantes se equilibrarem logo. Mesmo no teu espírito.