A leitura de março
Exercício retrospectivo: em março, o Clube de Leitura Escuro Medo leu "Mil Placebos", um romance inclassificável (porque se insere em vários gêneros) do autor brasileiro Matheus Borges
A respeito do romance de estreia de Matheus Borges, muitas dúvidas pairam no ar, e isso faz com que Mil Placebos seja um livro envolto em mistérios. Convidei o autor para trazer algumas particularidades da obra.
Como é um livro inclassificável, achei interessante iniciar o post com a sinopse:
A trama de Mil Placebos gira em torno de um personagem com vínculos sociais frágeis que frequenta fóruns na internet. Após se apaixonar por uma jovem que acaba cometendo suicídio logo no começo da história, ele cai numa longa, intensa e violenta espiral de acontecimentos incomuns.
I.B. E então, Matheus, quais as inspirações para escrever Mil Placebos?
M.B. O impulso inicial ocorreu em 2013, durante as manifestações que tomavam conta do país. As informações vinham fragmentadas, em posts, vídeos curtos, fotografias, coisas meio descontextualizadas. A interpretação daqueles eventos dependia de scrollar as redes sociais, tentar separar fatos e factoides, encontrar contradições. Sempre fui muito desconfiado, então eu também via aquilo com alguma desconfiança. Com essa percepção, pensei como seria se a literatura replicasse uma experiência dessas. De pouco em pouco, foi se criando esse personagem, o narrador, e a história foi se afastando das redes sociais, entrando num território bem mais complexo. Muito do que me motivou foi a ideia de recuperar uma fagulha original do gênero ficção científica, inserido num mundo parecido com o nosso. Em vez de simplesmente reproduzir convenções narrativas da ficção científica, eu queria que Mil Placebos olhasse para a internet como os primeiros autores do gênero olharam para as tecnologias de suas épocas: com certo deslumbre e certa magia, mas também com uma certa disposição à perversidade, à extrapolação dos limites, à investigação de como os processos tecnológicos podem corromper a humanidade – o que, na prática, é o núcleo moral do Frankenstein. Em paralelo, eu vinha lendo muitos autores que tratavam da formação do capitalismo tardio e possíveis formas de um pós-capitalismo. Foi importante repensar a verdadeira natureza do sistema capitalista, não apenas um sistema econômico, mas também um fenômeno cultural, mental, que acaba reprogramando nossos desejos e compreensão da realidade. Tudo isso cria um descompasso que se manifesta como transtornos mentais: depressão, burnout, ansiedade. Impulsos homicidas. Tudo isso está lá no Mark Fisher, no Franco Berardi. Essas coisas todas conversavam na minha cabeça: a maneira como as big techs vinham reconfigurando o mundo, a transformação do sistema capitalista, a vontade de escrever uma narrativa que lidasse com ficção científica, com histórias de mistério e espionagem. Logo Mil Placebos se tornou essa história esquisita, em que coexistem a perspectiva de ficção científica, a introspecção do romance realista e o jogo com a estrutura narrativa dos romances policiais. Nada foi muito planejado, para falar a verdade.
I.B. E esse fascinante mundo ficcional? Qual a motivação de Eyeball Kid?
M.B. Mil Placebos tem um personagem que ocupa o centro do palco, na condição de único narrador da história. O leitor praticamente ocupa a mente desse personagem ao longo de todo o livro. E, nesse sentido, é interessante como as coisas se confundem: o livro, a história, o personagem. Os três são, essencialmente, uma coisa só. E isso sempre me atraiu em livros contados em primeira pessoa, como essas diferentes instâncias se misturam e se tornam indissociáveis. Muito se fala na figura do narrador não confiável, mas minha perspectiva é outra, de que não há outra opção a não ser confiar plenamente no que ele diz, entregar-se a esse sujeito, por mais que esteja contando mentiras ou que tenha uma percepção distorcida dos fatos. Todo livro narrado em primeira pessoa tem esse aspecto, o que fica bastante evidente quando tratamos de autores excepcionais que souberam construir isso de modo singular: Machado de Assis, Dostoiévski, Salinger. O narrador de Mil Placebos é um recluso, um cara com sérios problemas de sociabilidade, voltado a essas questões intelectuais. Ele é um cara depressivo, que não tem muitas perspectivas na vida, tudo parece catastrófico. Durante a escrita, me familiarizei com o termo “hikikomori”, uma palavra em japonês que denota os jovens que se colocam em períodos prolongados de isolamento, voltados integralmente para suas vidas no ambiente virtual. Isso fazia sentido para mim, afinal eu queria falar de alienação. Um pouco mais tarde, quando eu já me encaminhava para o final do processo de escrita, jovens como esse narrador começaram a se organizar politicamente no mundo real, intitulavam-se “incels” e foram uma base importante para o reavivamento da extrema-direita. De certa forma, o personagem central de Mil Placebos meio que traz um pouquinho de tudo isso, de toda essa frustração e paranoia que alimenta uma juventude frustrada e raivosa.
I.B. Li muitas referências em Mil Placebos, então preciso te perguntar quais as obras com que o livro conversa.
M.B. Eu gosto muito de música pós-punk, então acho que o livro tem algo da atmosfera conjurada por bandas desse gênero: há um certo elemento de confronto, algo desconfortável e deprimente. Ora melancólico, ora sarcástico. Bandas como Wire, Gang of Four, Joy Division, Magazine, The Fall. Enfim, bandas que eu vinha ouvindo enquanto escrevia esse livro. Música eletrônica experimental e industrial. Algumas coisas do Nine Inch Nails, do Oneohtrix Point Never. Na literatura eu penso em alguns autores que me acompanham há algum tempo. J. G. Balard, que soube como ninguém descrever a paisagem psíquica do sujeito imerso num mundo tomado pelos signos do capitalismo. Don DeLillo, cuja obra foi construída em cima de uma paranoia especificamente americana, e que lida muito com o elemento do terrorismo e das teorias de conspiração. Outro livro que gosto de citar é o Meia-noite e vinte do Daniel Galera, que foi publicado no momento em que eu entrava na reta final da escrita de Mil Placebos e não sabia muito bem o que fazer depois disso.
Mil Placebos foi discutido no Clube de março/2023. Quer mais detalhes? Acesse a gravação no YouTube.
Para dar um gostinho do ambiente misterioso que você visitará, segue trecho:
Minha lembrança do verão daquele ano é sobretudo química: um de nós tomava venlafaxina e o outro, citalopram. Éramos dois zumbis, sonolentos ou insones, sobretudo aéreos. O ambiente não era, portanto, o mais agradável.
Aqui, o que outros autores disseram a respeito da obra:
Em seu primeiro romance publicado, Matheus Borges demonstra seus poderes singulares de construção psicológica, evocação de detalhes e observação atenta da nossa realidade fraturada e saturada de informação. Daniel Galera
Mil Placebos nos apresenta um universo de incomunicabilidade, embora estejamos soterrados de informação, ardendo de tanta proximidade e tanto contato. Eyeball Kid, o narrador que nos estende a mão, é um sujeito assustado, embora lúcido. Ele tem medo, pode se tornar violento e se deixar arrastar pela desconfiança, pela confusão mental e pela fúria paranoica que enxerga em quase toda parte. Ele pode não ter mais retorno. Ele quase não tem mais cura. Fabrício Silveira
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