Tudo por amor???
A discussão sobre O morro dos ventos uivantes e outras considerações sobre limites e posse
Como é possível a gente gostar tanto de um livro que só tem personagem detestável?
Partindo desta dúvida, compartilhada por diversos Escuromeders, inicio o texto sobre a obra de março do Clube.
O morro dos ventos uivantes é um clássico, tem seu merecido lugar no pedestal da literatura. A história do amor que Heathcliff dedica a Catherine é conhecida até por quem nunca leu o romance. Fala de um amor incontrolável que, mesmo sendo correspondido, provoca a ruína de todas as pessoas que cruzam o caminho dos envolvidos.
Heathcliff é o homem possessivo que põe qualquer atrocidade na conta de seu amor. Na linguagem contemporânea, um macho escroto, o sujeito chernobyl que promete – e entrega – um relacionamento tóxico com todos os agravantes.
Mas vamos com calma. Peralá que Nelly, a narradora, se propõe a humanizá-lo. E ele precisa deste olhar mais gentil porque é o personagem central da obra de Emily Brontë.
Pedinte nas ruas de Liverpool, Heathcliff nem seu nome sabia. O Sr. Earnshaw se comove com sua condição. Adota-o e o leva para viver em Wuthering Heights. Mas não o batiza com o sobrenome da família. O garoto passa a se chamar Heathcliff, um nome/sobrenome que significa algo como o penhasco da charneca.
Pela descrição de Nelly, o menino tem a pele escura, cabelos e olhos negros. Imagina-se uma criança de origem indiana, cigana ou árabe. Alguém traficado e depois abandonado na cidade portuária. Desde pequeno, possui temperamento difícil, mas até aí tudo normal: habitantes da charneca são brutos. As relações de Hindley, Hareton, Joseph, Catherine e Nelly são regidas pela brutalidade.
Encontro de março teve discussão acalorada. Assista aqui.
Mesmo não apresentado uma versão confiável, Nelly se mostra como a personagem sensata. Representando o peso moral, a criada se mete na vida dos patrões oferecendo conselhos nada gentis. Nelly enfrenta todo mundo e (talvez por isso) sua narração seja pouco confiável. Difícil acreditar numa serviçal tão atrevida.
Heathcliff cresce suportando as agressões de Hindley, o filho mais velho do Sr. Earnshaw. Sente-se inferior e se revolta com sua condição. E tudo piora quando Catherine - a filha mais nova do Sr. Earnshaw - decide se casar com Linton, um rapaz mais rico, mais branco e com melhores modos. Em conversas com Nelly, o personagem lamenta sua origem e sua cor. São características que determinam seu destino.
A decepção amorosa provoca a fúria de Heathcliff e a partir de então ninguém escapa do veneno de seu ressentimento. A narradora Nelly, é claro, oscila em seus julgamentos. Algumas vezes, ela critica o comportamento monstruoso de Heathcliff, em outras, convence o leitor a ser compreensivo. Todos os exageros são praticados em nome do amor.
Durante a discussão do Clube, formamos três grupos de defesa: o team Nelly, o team Heathcliff e o team Catherine. Assumi o terceiro, Catherine me ganha muito quando ergue a voz contra as lamúrias de um homem comprometido em culpabilizá-la pelas ilusões que ele próprio criou.
Concordo e aceito que Catherine é mimada, fútil e irresponsável. Mesmo assim, tem um olhar bem mais racional sobre o amor. Compreende que uma possível união com Heathcliff a destruirá.
E é claro que vou embarcar na onda de falar sobre Adolescência porque a série tem tudo a ver com o que a história de amor frustrado nos diz.
Jamie Miller, treze anos, persegue a colega que o rejeitou até o estacionamento de um supermercado. Sem desconfiar que as câmeras de segurança flagram seus movimentos, ele a mata a facadas. Baixa autoestima, frustração e a crença de que mulheres são propriedades aproximam o jovem Jamie do jovem Heathcliff. A motivação nada tem a ver com amor (ou paixão). Trata-se de posse.
No Café Mal Assombrado tem recadinho de Heathcliff - foto tirada após um café que tomei com Paula Febbe (ela esteve em Porto Alegre semana passada para compor o júri do FantasPoa)
“Seu amor vem até aqui. Passando da fronteira que impus, vire-se como puder.” (Com outras palavras, bem mais cortantes, e performance teatral, Catherine risca o limite que derruba o ímpeto do apaixonado Heathcliff). Levanta a voz e o enfrenta.
Pois então, amantes dos clássicos góticos, ainda em defesa de Catherine, vou citar outra artista inglesa (e albanesa): “if you don’t wanna see me dancing with somebody, don’t show up”.
Dua Lipa, me parece, entende de homens que dançam.
Durante um período da vida me interessei por danças de salão. A maioria dos parceiros dançava horrivelmente, pisava no pé, não sabia conduzir a dama (ok, podemos abrir aqui uma abinha para problematizar o conceito do cavalheiro que deve conduzir a dama). Professores homens ensinavam alunos homens. Demonstravam os locais corretos para pressionar: a cintura e a mão direita da parceira. A maioria exagerava na condução, pressionava demais, a dança deixava de ser uma diversão para se transformar num sofrimento.
Aspirantes a dançarinos inevitavelmente faziam com que eu lembrasse de meu avô. Meu avô tocava a cintura de leve, sem jamais pressionar. Sua mão esquerda nunca se fechava sobre a mão da parceira. Pelo contrário, ele a mantinha espalmada, postura que eu interpretava como atitude de segurança. Ele sabia conduzir.
Meu avô viveu (e dançou) até os 98 anos.
O Clube de Leitura Escuromeders segue se encontrando no último sábado de cada mês. Ontem debatemos O médico e o monstro (em breve sai texto) e posso afirmar que as discussões estão cada vez melhores.
Ah, um super parabéns à Sinara Foss, autora de Fotossíntese (Ed. GOG), que está indicada ao Prêmio Açorianos na categoria narrativa curta. O Clube debateu Fotossíntese em setembro de 2024.
Outras leituras:
O tempo é o que acontece na ausência do infinito, de Harini Kanesiro (Ed. Caos & Letras) – recomendo muitíssimo esse romance.
Doppelgänger, de Naomi Klein – tradução de Renato Marques (Ed. Carambaia) – gostei bastante, mas tem hora que se repete e se torna cansativo.
Maniac, de Benjamin Labatut – tradução de Paloma Vidal (Ed. Todavia) – dos três que li do Labatut, esse é o que menos gostei.
O pacto da branquitude, de Cida Bento (Ed. Cia das Letras) – importante e atual.
Rendeu boas discussões no grupo. Como no livro, a discórdia foi nossa companheira. KKKK. Mas tudo com graça. Concenso foi nossa indignação com Lockwood, o forasteiro que adora uma fofoca. Sou time Nelly, a única com miolos.
Também sou Team Catherine. A visão dela sobre estar com Heathcliff e acabar em ruína é bem lúcida pra época!