Eu já era adulta da primeira vez que li Drácula. Lembro que não me apeguei muito aos personagens (eles não são, mesmo, muito aprofundados). Os homens são bravos, justos, honestos, bons; as mulheres são delicadas, frágeis, inocentes – e isso é reforçado a todo momento. Lembro de não ter ligado a mínima para os sofrimentos de Jonathan Harker, o corretor/advogado que se vê, graças à ambição de ascender socialmente, enclausurado no castelo de um reino distante. Nem do Dr. Seward, o pretendente rejeitado pela srta. Lucy Westenra.
Os únicos personagens que me despertaram grande interesse foram os que tiveram relações bem próximas do que compreendemos como sexo: Lucy e o Conde.
Em 2013, a Netflix lançou uma microssérie de três episódios com o título nada original de Drácula. Na obra, atrizes e atores encenavam a história do vampiro mais reverenciado na Literatura em ambientações diferentes da original. Roteiristas, também, ousaram outras inovações, como a Van Helsing mulher, descendente da linhagem do doutor meio cientista meio místico do século XIX. A irmã Ágata, pouco explorada na obra original, recebeu contornos interessantes e certa aproximação romântica com o monstro.
E Lucy Westenra ganha um episódio inteiro para si. Linda, jovem, baladeira, a Lucy, tal como a original, deseja a intensidade da vida. Encoraja Seward para depois desprezá-lo. Rodeada de amigos, a srta. Lucy não perde uma festa. Flerta, beija muitas bocas, publica fotos nas redes sociais. Em frente ao espelho – ou à câmera do celular – admira-se. Para a geração da selfie, nada mais comum; para o monstro que abomina o instrumento que serve à vaidade dos ocidentais, uma idiotice.
Interessada, Lucy permite a aproximação do Conde. E então, driblando a morte, exaltando o poder volátil que a juventude proporciona, Lucy e Drácula atraem um ao outro. No cemitério, antes da mordida fatal, o Conde a questiona: você realmente não tem medo de nada, né? Ela ri. Não, não tem medo. Oferece o pescoço. A morte, que bobagem, não a assusta. Perder a juventude, a vitalidade, a beleza, sim. O Conde a alerta: não permita que te queimem. Ela não dá ouvidos. Ao ressurgir da gaveta do instituto médico legal, a desgraça de uma Lucy que passou por cerimônia fúnebre e cremação se dá na hora em que a bela se vê transformada em monstro.
Mas peralá, vamos com calma. Lucy não é essa criaturinha fútil que estou pintado. Pelo menos, ela não é só isso. Em cartas à amiga Mina Murray, Lucy Westenra (a original) confessa a dificuldade de escolher entre três pretendentes. Qualquer dos três, tanto Arthur Holmwood, quanto Quincey Morris ou Jack Seward, qualquer um a faria feliz. Num ímpeto de sinceridade, ela questiona por que uma mulher não poderia se casar com três maridos. Em outro momento, Lucy defende a possibilidade de poder olhar para seu noivo enquanto ele dorme. O que nossa vampira favorita que habla mesmo está insinuado nos dois trechos é algo fácil de interpretar. Ela fala sobre sexo.
Tanta impetuosidade não passaria sem castigo na Inglaterra vitoriana. Lucy é a primeira vítima de Drácula, e o ataque ocorre logo que ele desembarca, na forma de um cão enorme, na baía de Whitby. Sonâmbula, ela é atraída para o encontro com a fera. No cinema, Francis Ford Coppola, eternizou a cena de sexo bestial. Difícil algum fã da obra não lembrar. É um dos tropos do horror, o momento em que o gênero atinge o tabu. A punição, sabemos, não demora. Lucy tem seu sangue drenado pelo monstro que passa a visitá-la todas as noites.
“Não foi ele quem afirmou que a transfusão de seu sangue em suas veias fizera dela sua legítima esposa? Se fosse assim, o que dizer aos demais doadores? Há, há. Então, de repente, a nossa adorável criatura se converte numa improvisada poliandra” (Fala de van Helsing transcrita no diário do Dr. Seward de 22 de setembro).
Técnica inovadora para a época, a transfusão de sangue foi o primeiro tratamento que Van Helsing indicou à enferma. Tratando da violenta anemia que tornava a pele de Lucy branca como cera, o médico decidiu repor o sangue da paciente o mais rápido possível. Segue-se, a partir de então, uma questão moral que incomoda a todos os cavalheiros: não seria infidelidade da doente receber sangue de um homem que não é seu noivo?
Por sorte, o noivo chega e oferece o braço para a transfusão. “Disse então Arthur que a partir daquele momento passou a sentir uma sensação como se ambos estivessem casados, e que ela se tornara sua esposa sob as bênçãos de Deus” (diário do Dr. Seward de 22 de setembro).
O caso é que a anemia de Lucy tem nome e sobrenome. E é insaciável. Duas noites depois da transfusão, a saúde de Lucy volta a decair. Não há mais a probabilidade do sangue de seu noivo – ele está distante, cuidando do pai. Dr Seward, ainda sofrendo as dores da paixão não correspondida, oferece seu sangue. E assim, durante mais de semana, as veias de Lucy nutrem-se do sangue de Van Helsing e, por fim, de Quincey Morris. A certa altura, um tanto constrangido com o procedimento, Morris se espanta com a dama que recebeu quase todo o sangue de quatro homens fortes. “Mas, meu Deus do Céu, nem mesmo todo o seu delicado corpo teria capacidade para tanto” (diário do Dr. Seward de 18 de setembro). Desnecessário apontar a referência sexual aqui.
“Terei que decepar sua cabeça e encher sua boca com um punhado de flores de alho silvestre. Depois disso, transpassarei todo o seu corpo com um bastão bem forte e pontiagudo” (Fala de van Helsing transcrita no diário do Dr. Seward de 26 de setembro). Quando todos os esforços falham e Lucy sucumbe, ela se transforma numa criatura livre das convenções sociais. Voluptuosa, sedutora e ainda mais bela do que quando estava viva, Lucy pode agir como sempre desejou porque não responde mais às regras morais que a sociedade dita. Há, entretanto, um problema. Ela, agora, é um monstro. Sexualizada e refratária ao instinto maternal (a vampira rapta e se alimenta do sangue de crianças), Lucy é um perigo para senhoras e senhoritas vitorianas. Não basta que seja morta. Precisa ser aniquilada.
Ellen, de Nosferatu, tem um tantinho de Mina Harker e um tantão de Lucy Westenra. A cena inicial do filme (versão Robert Eggers, 2024) mostra Ellen sonâmbula perambulando por um jardim. Deitada, ela geme e se contorce, um comportamento bem próximo de quem está prestes a atingir o orgasmo. Quase lá, Ellen recua. Abre os olhos no momento em que percebe sua garganta sufocando. É o monstro sobre ela.
No filme de Eggers, o desejo reprimido de Ellen se torna o conflito principal da obra, a força motriz que conduz a narrativa. Ela deseja, mas sabe que deve reprimir esse desejo. A repressão a adoece. As cenas que mostram seu corpo em espasmos nada devem às cenas de filmes de possessão demoníaca.
A inovação na versão de Eggers é a cena de sexo entre Thomas e Ellen. Um sexo urgente, apressado, cheio de roupas, que rendeu um dos trechos menos sensuais do filme. – Veja bem, estamos aguardando esta cena desde 1897.
A cena anterior, que provoca os instintos de nosso tedioso Thomas Hutter, é bem mais interessante. Uma Ellen transformada, com o olhar da mulher possuída por um demônio, abaixa-se até que seu rosto fique muito próximo da braguilha da calça do marido. Dali, ela o encara. Seu olhar o desafia.
“Amigas, eu achei esse filme um tesão do início ao fim”, foi o papo que rolou no pequeno grupo de autoras de horror que participo. Compreensível, o filme, tal como a obra original, é inteirinho sobre sexo.
Qualquer autora de horror sabe das proximidades do medo e do desejo. E do tanto que o gênero horror trata de questões tabus.
O desejo proibido de Ellen a atormenta, e seu gozo (para a tristeza de mulheres autoras que produzem horror em 2025) não passa de um sacrifício. Assim como Lucy decapitada e trespassada por uma estaca de madeira, Ellen também receberá seu castigo. Seu compromisso é o de salvar a cidade. Só por isso está liberada para atingir o orgasmo. Seu gozo não é para si. É para um bem maior.
OBS: se você não está familiarizado com os nomes dos personagens e as obras, fiz um resumão na newsletter anterior.
O Clube de Leitura Escuromeders se reuniu ontem para discutir Drácula, Nosferatu, o sangue e a sexualidade. O vídeo vai em breve para o canal. Por enquanto, confira a discussão da primeira parte da obra (até o trecho da destruição de Lucy Westenra) aqui.
Segunda-feira iniciamos a leitura da obra de março: O morro dos ventos uivantes.
O Clube é gratuito, as discussões ocorrem em grupo de WhatsApp e através de um encontro mensal, via Meet. Acabamos de inaugurar um novo canal de Telegram. Gosta de Literatura de Horror? Vem com a gente!
Lucy é a personagem mais amada e apavorante de Drácula. Eu me junto aos coro: amamos Lucy. Ela representa a mulher que (em vida) não dependia de homem algum, embora desejasse a companhia de vários deles. E, como vampira (desmorta), exercia sua liberdade selvagem e anti-maternal. As reuniões do clube são cada vez melhores. Obrigada, Irka Barrios por proporcionar perspectivas originais sobre os textos às leitoras e aos leitores do horror
i love lucy westenra too. mas acho interessante tb como todos os personagens estão em um ponto de transição ou entre dois lugares - o drácula é o mais óbvio: entre a morte e a vida, tramando uma transferência dos cárpatos para ocupar londres; o professor van helsing, entre o racionalismo científico e o misticismo romântico; a mina, entre o ideal de esposa dedicada e a disposição a se igualar aos homens; o dr. seward, entre a investigação médico-científica da loucura e o abuso de entorpecentes para lidar com dor de uma paixão não correspondida. todos estão prestes a embarcar numa jornada de caça ao vampiro que vai tirá-los do centro do mundo e levá-los ao cume [literalmente] do horror e vão deixar de lado as tecnologias de fronteira [máquina de escrever, fonógrafo, transfusão de sangue] para atravessar a fronteira da racionalidade e mergulhar no mundo de magia e superstição que viam com desprezo, no mínimo como algo exótico q lhes despertava a curiosidade. no filme do coppola isso fica claro numa fala do van helsing, ao final, qdo ele declara "We've all become God's mad men.” no original, eles caem de joelhos e rendem graças ao senhor, mas todo o clima da segunda parte do romance é dado por esse mergulho na loucura e no fanatismo q busca justificação dos atos subversivos, ilegais, criminosos, abomináveis até q eles praticam.