Escrúpulos e a agenda reestruturada
A leitura do mês do Clube de Leitura Escuro Medo e um texto sobre Escrúpulos
O encontro de maio foi impossível de realizar. Como todos sabem, a enchente causou diversos danos e nos tirou de casa por um mês inteiro. Em junho, os queridos Escuromeders decidiram ler Vespeiro (DarkSide Books, 2023). A mediadora será Andréa Berriell, e o encontro dia 29/6 às 17hs via Elos.
Uma abinha a mais
Uma vez estive na França, em 2009. Retornava de uma semana de estudos na Alemanha e consegui escala em Paris. Nos hospedamos num hotel pouco simpático ao lado da Gare de Austerlitz. A localização não era das piores, podíamos caminhar pelas margens do Sena até Notre-Dame. Rolês mais distantes necessitavam metrô (e sou rata de metrô, confesso). Uma tarde, na ida para Montparnasse, em determinada estação, entrou um pai com seus dois filhos, um garotinho que devia ter uns três anos e uma bebê de colo. O pai se equilibrava para segurar as crianças assim que o trem acelerou. Levantei e ofereci meu assento. O pai me estendeu a mão, espalmada, e fez cara de ofendido: “no”.
Foi uma grande dificuldade, para mim, aceitar ajuda neste período da enchente.
Sou da geração X, nasci numa época dureza: inflação, planos econômicos, sonho da casa própria, do emprego estável, e o temor de ser abordado, ou preso, ou perseguido, ou assassinado pela polícia da ditadura militar. A tensão diária na vida de nossos pais nos educou para sermos os fortões que devolvem a porrada. Aprendemos que era a única maneira de sermos respeitados na escola. (Me refiro a devolver a porrada também no sentido metafórico. O famoso não levar desaforo para casa).
Assim que as pessoas amigas souberam que fui atingida pela inundação, e que a perda material seria bem considerável, passei a receber inúmeras mensagens de apoio e oferta de suporte financeiro. Eliza, minha irmã que mora no Rio, inclusive, fez força para que eu aceitasse a vaquinha que as amigas dela pretendiam organizar. Minha reação natural, a exemplo do pai francês, foi espalmar a mão e dizer não.
“Não se constranja em aceitar ajuda. Você vai precisar”, a amiga escritora Morgana Kretzmann afirmou num dos primeiros áudios de apoio que recebi. Na resposta, esclareci que eu e meu companheiro tínhamos alguma reserva, encaminharíamos o seguro do carro e, talvez, conseguíssemos algum reparo através do seguro da casa. Falei que me sentia indigna ao aceitar ajuda em dinheiro quando pensava na enormidade de pessoas que perderam tudo.
Também disse, ontem, a outro bom amigo, o escritor Daniel Galera, que acho que todo mundo sente um pouco de culpa por não ter sofrido tantas perdas quanto pessoas que tiveram a vida arrasada.
Não fui tão atingida quanto a Maria Maikele, escritora, moradora do bairro Mathias Velho que viu a água subir cinco metros. As pessoas da vizinhança de Maikele se refugiaram numa igreja. Com a força da água, a porta da igreja obliterou a passagem. Mas Maikele tem mãe, que para mim acaba de se transformar numa Mulher Maravilha, e essa Mulher Maravilha conduziu 75 pessoas a uma saída alternativa. Gritaram até conseguirem a atenção dos barcos de salvamento. Houve tumulto na hora de priorizar os resgates. De novo, a Mulher Maravilha Mãe da Maikele, mesmo ouvindo xingamentos e ameaças, organizou a fila e possibilitou o salvamento de todos.
Minhas perdas são bem menores que as do Pércio Júnior, amigo e leitor. Nas conversas que tínhamos via áudio, Pércio se mostrava confiante quanto ao futuro. Confesso, eu invejava sua forma positiva de aceitar a tragédia. Na segunda semana de enchente, eu caí em depressão, na quarta eu queria empunhar um lança-chamas e apontá-lo contra os prédios da prefeitura, da câmara de vereadores, do Palácio Piratini.
População faz protesto e arte com os entulhos que se acumulam
No dia em que a água invadiu sua casa, a madrugada de 4 de maio, Pércio saiu com a roupa do corpo e seu cãozinho de estimação. Como eu, refugiou-se no litoral, único lugar para onde as estradas se mantinham seguras. Trocamos diversas mensagens no período de espera, Pércio sempre otimista. Deve ser, ele confessou a certa altura, em função de sua crença espírita. Vi-o bem triste quando retornou e percebeu que as estruturas da casa estão comprometidas. Ainda não há um laudo técnico, mas é possível que seu lar esteja inabitável.
Minha dor é infinitamente menor que a do amigo músico estudante de Engenharia (UFRGS) e parceiro de projetos culturais Luiz Paulo Zanovello que, além de ter as estruturas da casa comprometidas, lida com uma condição de saúde repentina que colocou sua mãe, a amiga Salete Zanovello, internada na CTI.
Por conta dessas e tantas outras histórias, lido o tempo inteiro com meus escrúpulos. A voz da consciência ordena que eu me cale. Minha situação, apesar de dolorida, é tão menor. Outra voz, entretanto, vem mais forte. Não seria a escritora a pessoa com a capacidade de se colocar no lugar do outro? Não somos os seres com certa sensibilidade para absorver e transformar a dor em expressão?
Meu ímpeto é sair correndo, ajudar todo mundo. O caso é que todo mundo é muita gente, e muita gente querida, talentosa, generosa. E há a preocupação com os entulhos, o destino do lixo, as doenças oportunistas, o clima, a ameaça de nova tragédia, a política, o descaso, a mão grande do mercado que lucra até mesmo em tempos horrorosos. Por isso tudo e tanto mais, guardo os escrúpulos e peço que sigam ajudando, apoiando, compartilhando.
Livros retirados com uma pá de construção
Para finalizar, colo aqui trecho da poesia de Jonatã Nunes, poeta e gari, autor do livro O tempo é prioritário e meu vizinho de bairro.
“Senti o medo, o pavor
o trauma e os sustos
No meio do desespero,
segredos ainda vem escorrendo
Sobre o valor de nossas crenças
vi lágrimas em muitos terços
Em meio a um ato de esperança
há lágrimas e segredos”
(trecho de poema escrito por Jonatã e seu filho Murilo)
Outras autoras e autores atingidos pela enchente:
Leituras do momento:
Não foi à toa que citei as conversas que tive com Daniel Galera e Morgana Kretzmann. Os livros deles tratam de desastres ecológicos. O deus das avencas (Daniel Galera) eu li cerca de dois anos atrás e me impactou demais. São três novelas que se passam no presente, num futuro mais próximo e num futuro bem distante. Água turva (Morgana Kretzmann) eu salvei da enchente. Com a umidade do alagamento, o papel ficou meio molenga, fora isso tá perfeito e o guardarei como lembrança. Também quero indicar Colapso, de Roberto Denser. Meu colega na editora DarkSide Books criou uma realidade dura, duríssima, que se passa 40 anos após um evento denominado marco zero. É um mundo hostil em que os homens, para sobreviver, fazem uso das atitudes mais violentas.
impressionado pela destruição e mais pela tua força em seguir escrevendo. Obrigado
Grande texto! Obrigado pela lembrança, Irka.