Gritam pássaros em fuga
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Uma abinha a mais
O poder do subtexto
Em janeiro deste ano, na semana em que estive sozinha logo depois do Réveillon, decidi que chegara a hora de assistir Aftersun (Charlotte Wells, 2022). Eu sabia pouquíssimo sobre o filme, fiz questão de não me informar a respeito. Sabia, porém, que precisava estar em certo mood para assisti-lo. Somente espiando o material de divulgação era possível perceber que era um filme para derrubar. Assisti, não estava enganada. Na história aparente, o filme não mostra nada demais. Nas entrelinhas é que ele sugere. O não dito, os closes, as escolhas da diretora nos levam a deduzir tudo mesmo que saibamos tão pouco sobre a filha pré-adolescente que passa as férias com pai.
Um tempo depois, assisti a outro filme que trabalha muito bem subtexto. Zona de interesse (Jonathan Glazer, 2023) não alivia o peso da atmosfera em momento algum. Como Aftersun, derruba, embora a queda te leve a lugares mais sombrios. A história aparente mostra o casal cheio de filhos que vive no interior da Alemanha, numa casa com um belo jardim. A luz, a música, as relações e reações, o cenário ao fundo e atitudes incomuns ocupam-se de mostrar que atrocidades ocorrem logo ali, atrás dos muros. O filme avança, diálogos deixam claro que as pessoas – pelo menos os adultos – sabem exatamente o que se passa. E se beneficiam das torturas e assassinatos. Numa das cenas marcantes, o marido confessa ao telefone que nunca esteve tão feliz na vida. Conseguiu retomar o cargo que o fará retornar a viver na casa com a família. A consequência da promoção que recebeu não o sensibiliza, nem à esposa. Não há menção direta ao Holocausto, mas há o sussurro constante.
Saber dar o tratamento adequado ao subtexto é um grande trunfo literário. Quando uma autora ou autor consegue, pode comemorar: o conto terá um efeito interessante em seus leitores.
Há contos com subtextos específicos, bem marcados. Sempre uso o conto Verde Lagarto Amarelo, da Lygia Fagundes Telles, como exemplo. A relação conflituosa entre irmãos, a competição que gera um amor difícil de classificar é o que salta por trás daquele encontro supostamente amistoso. Existem, também, subtextos mais amplos, que se diluem ao longo do livro. Manual da faxineira, de Julia Berlim, é um excelente exemplo. O drama do alcoolismo faz o jogo de mostra e esconde a cada página. Com alguns anos de atraso, li Amora, de Natalia Borges Polesso. Na obra, somos apresentadas ao universo em que inúmeras questões ligadas à vivência da mulher lésbica emergem conto após conto. O livro se costura em cima dos sofrimentos e conquistas de mulheres que só desejam segurança para amar outras mulheres.
Vanessa Amaral
Todo esse preâmbulo é para falar de Gritam pássaros em fuga, leitura de julho do Clube Escuromeders. Vanessa Amaral, a autora, se propõe a destrinchar um tema importante que nosso país enfrenta: a mineração. Sem cair na facilidade do julgamento, Vanessa nos mostra as diversas facetas desta atividade exploratória ambientando seu romance em Pedra da Rainha, cidade do interior de Minas Gerais. A mineração tem seus defensores, afinal a companhia promete empregos, infra-estrutura, dinheiro circulando e, quem sabe, turismo. Parte dos habitantes, comandada pelo professor Nióbio, não compactua com a exploração das terras, a destruição do meio ambiente e o descaso com a segurança dos trabalhadores. Além do embate externo, acompanhamos o interno, que ocorre na consciência de Aurora, a protagonista, quando ela se depara com a morte de funcionários de forma sobrenatural.
A história que se passa em paralelo oferece o subtexto. Cairã, filho de pai negro e mãe indígena, vigia o pai iludindo-se que o protege da doença do ouro. João, homem escravizado, mineira no rio que banha Pedra da Rainha em busca de ouro para seu patrão. A história de Cairã e seu povo dá o tom ao que se passa no tempo de Aurora. A atividade centenária, que tanta violência gerou, segue repercutindo o desrespeito e descaso desde nosso passado escravagista. Com capítulos intercalados, as histórias se iniciam distantes, mas – como é de se esperar – acabam se cruzando no momento do clímax.
Para assistir ao encontro em que discutimos Gritam pássaros em fuga, é só acessar aqui.
Gritam pássaros em fuga (Ed. Urutau, 2023)
Fiz três perguntas a Vanessa Amaral sobre a sua criação.
I.B.: Que motivações te fizeram escrever sobre esse assunto tão atual?
V.A.: Os problemas que já foram vividos e sofridos e mesmo assim voltam.
O Ciclo do Ouro destruiu grande parte de Minas no passado.
A mineração hoje em dia, já teve acidentes que se repetiram. E talvez, infelizmente, se repitam de novo. Esse ciclo de desgraça aliado à negligência do poder público me incomoda.
A mineração oferece toda uma problemática ambiental e ao mesmo tempo é necessária. Acredito que essa seja a grande questão que fica na minha mente. Como resolver esse problema?
I.B.: Você apresenta, no livro, uma visão ampla da situação, e dá voz aos diversos lados de uma questão complexa. Seu romance ganha muito quando evita o olhar maniqueísta. Gostaria de te ouvir mais a respeito.
V.A.: Aurora é aquele tipo de pessoa que vai alcançar seus objetivos, não importa o que tenha que fazer. É a única coisa que importa, responder ao chamado.
Nióbio se aproveita do que precisa aproveitar, e depois luta contra aquilo que o beneficiou. É até um pouco hipócrita
Cairã é pureza, só quer os pais juntos, livres e felizes. Mas precisa enfrentar muitos tormentos injustos para uma criança.
A mineração é um mal necessário. Aurora se pega nas necessidades da mineração e Nióbio no mal que ela causa.
Os dois não enxergam o outro lado.
I.B.: O romance todo paira sobre um subtexto muito brasileiro que é a questão da escravização. Compreendemos as motivações, incluindo as proteções sobrenaturais, a partir da história de Cairã. O tratamento aos empregados da mineradora, também, decorrem de uma herança escravista do nosso país. E Aurora atua de forma irresponsável com eles em favor do lucro.
V.A.: Aurora faz o necessário para conseguir o que quer, ela acredita ter um chamado, o que é perigoso demais.
Ela se sente elevada e com uma missão. É complicado, porque ela se sente no direito de passar por cima, mesmo sabendo que é errado.
No final, ela se vê como uma boa pessoa.
Ela sente culpa.
A leitura do mês de agosto já está em curso, e tem grande consonância com o livro de julho. É o livro de contos Fotossíntese (Ed. GOG, 2023), da autora Sinara Foss. Para adquirir o livro e participar da discussão, é só clicar aqui.
Lembrando que o Clube também tem a versão spin off. No subgrupo penny dreadful, estamos debatendo, em inglês, a obra The barber of Fleet Street. Os encontros também ocorrem no último sábado do mês, às 15 horas.
O que li esse mês:
Desilusão de ótica, de Úrsula Antunes (Ed. Urutau, 2023)
Puta feminista, de Monique Prada (Ed. Veneta, 2018)
Amora, de Natalia Borges Polesso (Não Editora, 2016)
E continuo na Trilogia de Copenhagen, de Tove Ditlevsen – trad. Heloisa Jahn e Kristin Lie Garrubo (Cia. Das Letras), que agora, no meio, mostra com intensidade seu subtexto: a ascensão do nazismo.
Oficina de contos:
Em agosto, em quatro aulas, pretendo discutir técnicas de criação de contos, um pouco da forma, um pouco do conteúdo. Quem vem? Por favor, manifeste interesse pelo e-mail irkabarrios@gmail.com
Que burra. Respondi aqui a pergunta da oficina de contos. Amei teu texto Bibi. Nossa, quanta coisa preciso ver e ler. To muito atrasada. Hehe. Mas a maneira como você introduziu o texto foi genial.
Eu né? Só depende do horário.