Ok, já que ganhei a atenção com a manchete, vamos em frente, ao que interessa.
Convido-os a tratarmos de polemicona. Idosa, aristocrática, a treta vem lá do final do século XIX.
Sabia que Nosferatu não é a única versão proibidona da obra de Bram Stoker?
Pois é, antes mesmo do movimento expressionista do cinema alemão desafiar a viúva Stoker, um original com o dobro de páginas circulou pela Suécia. Intitulada Poderes das Trevas, a versão proibidona do Drácula de Bram Stoker segue um mistério.
Trabalho de um plagiador?
Versão mais completa descartada por Stoker? (Não esqueçamos que no século XIX as publicações custavam ainda mais caro que hoje).
Drácula de Bram Stoker é a leitura de janeiro e fevereiro do Clube
O que chama a atenção – e me faz pensar em plágio – é a troca dos nomes de alguns personagens. Em Poderes das Trevas, Drácula é o Conde Draculitz. Nosso honrado corretor de imóveis Jonathan Harker é Thomas, e mantém o sobrenome. Mina (Willemina) passa a ser Wilma. São nomes distintos, mas com a pronúncia não muito distante dos originais.
Em Nosferatu, de Murnau (1922), a regra se mantém. Thomas Hutter é o corretor, marido de Ellen, que precisa viajar até os Cárpatos para vender uma propriedade em Wilsburg, cidade fictícia da Alemanha. Conde Orlok é o comprador.
A confusão dos nomes segue nas outras refilmagens: em Nosferatu de Herzog (1979), Mina é Lucy (na minha opinião, a troca de nomes mais confusa), e em Nosferatu de Eggers (2024), Mina volta a ser Ellen.
Teríamos diversas questões a discutir aqui, como por exemplo, o olhar antissemita do Expressionismo alemão, o apagamento da personagem Lucy (importantíssima no Drácula original), a origem e os desdobramentos de Reinfield, a importância oscilante de Van Helsing, a ameaça da peste, e outas situações que se sobressaem em algumas obras e são menos importantes em outras. No momento, porém, vou me ater a uma questão crucial que diferencia as três obras: a motivação do personagem.
Iniciando pelo original, em Drácula temos um vilão com motivações ousadas. O conde, nobre de um país do leste europeu, decide tomar a Inglaterra através de estratégias dissimuladas. Quer aprender a falar um inglês perfeito, sem sotaque algum, quer a possibilidade de transitar por Londres sem ser reconhecido como estrangeiro. O medo social que permeia toda a narrativa é perceptível. A sanha imperialista da Inglaterra vitoriana morria de medo do povo estrangeiro que um dia viria cobrar as violências sofridas. Além disso, o conservadorismo, característica importante daquela sociedade, sofreria grande afronta caso um nobre de um país exótico aportasse em terras inglesas com o objetivo de seduzir suas mulheres. Não é a toa que Drácula assuma, quando em terreno londrino, a forma de um cavalheiro jovem e elegante.
Em Nosferatu a motivação é bem mais romântica. Ou sexual. A Alemanha, país mais ao leste e, portanto, menos próximo do centro do mundo, demorou mais a se configurar como nação. O objetivo de tomar Wilsburg não fazia muito sentido. E neste caldeirão não há como ignorar a derrota na Primeira Guerra Mundial. As sanções que a Alemanha sofreu resultou num cinema produzido apenas para consumo interno. O Expressionismo que ali nasceu trazia os cenários sombrios, tomados de ângulos agudos, as performances dramáticas, teatrais ao extremo, as maquiagens carregadas e um vilão com a aparência que remetia a um suposto inimigo. A motivação de Orlok tem mais a ver com uma tensão sexual. O conde se interessa por Ellen depois de enxergar a fotografia dela. Passa a desejá-la. Recorri ao pesquisador Cid Valle Ferreira, grande conhecedor do horror e do gótico, bem como de decadentismo e de literatura vampírica, para sanar a dúvida. Cid supõe que essa visão romântica da relação entre Orlok e Ellen vem do teatro francês.
Em Poderes das Trevas, original que foi traduzido pela editora de Cid (Sebo Cepsidra), o vilão tem a motivação mais grandiloquente. Na obra, Draculitz é líder de uma organização internacional cheia de conexões obscuras e seu objetivo é tomar o mundo. Para mostrar o poderio desta organização, o autor (ou autora) de Poderes das Trevas não economiza em narrar negociatas, planos perversos, conspirações e até um ritual de seita que usa mulheres como oferenda.
Enquanto Drácula é sutil e insinua, Poderes das Trevas escancara.
Para ouvir a discussão que rolou sobre Poderes das Trevas é só clicar aqui e aqui.
Para ouvir a discussão de ontem, sobre Drácula, com a presença mais do que especial de José Francisco Botelho é só clicar aqui.
Falei, falei, falei, e não cheguei em Lucy/Ellen, a mulher que mais me encanta nessas obras.
Mas tem texto pronto para o próximo domingo. A gente tem muito a falar.
e na categoria melhor penteado, o Oscar vai para Gary Oldman (Drácula de Bram Stoker, Coppola, 1992)
Uma abinha a mais
Ano passado, escrevi o texto de apresentação para o livro da Larissa Prado que está em pré-venda no site da editora O Grifo. Resolvi trazer um trecho para cá.
Desconfio que não haja uma única pessoa que não sinta uma espécie de frisson ao ouvir a palavra vampiro. Tememos vampiros, tanto os que suscitam emoções inatas – como medo, curiosidade, fascínio e tesão – quanto sua forma figurada: vampirizar alguém significa drenar energias, uma associação entre hospedeiro e parasita perceptível em relações amorosas, de amizade, de trabalho ou familiares.
Tememos? – é a pergunta que me ronda. Quem, hoje, tem medo de vampiro?
Presente na literatura, cinema, arte e cultura pop, o ser das trevas assumiu personalidades romântica, filosófica, transcendental, cômica, artística e intelectual. Tantas abordagens personificam um monstro que não assusta mais. Além disso, a realidade do século XXI é mais dura. Doenças, guerras, desastres, crises econômicas e a violência urbana são temores que superam o medo de uma mordida na jugular.
Por outro lado, a segunda pergunta que me faço é: vampiros existem para gerar medo?
Num passado medieval, acredito que sim. Comenta-se que um dos grandes temores da época era ser enterrado vivo. Famílias instalavam uma cordinha ao alcance do defunto para que ele avisasse o engano. Se a sineta tocasse, os parentes se apressavam em desenterrar o cataléptico. Foram tempos difíceis, em que se morria de febre, de tosse, de aragem a até de susto. Corpos preservados dentro da sepultura geravam desconfiança, e os gases eliminados pelo estágio inicial de decomposição provocavam certo pânico. O misticismo tomava o lugar que posteriormente foi ocupado pela ciência. Caso não fosse eliminado, o morto-vivo retornaria para assombrar familiares e se alimentar do sangue de inocentes.
A atualização da figura do vampiro elucidou os medos sociais da época em que ele foi explorado – como a xenofobia e a moralidade no caso de Drácula de Bram Stoker, e a liberdade sexual e a AIDS no caso de Entrevista com o vampiro, de Anne Rice. Em consonância a questionamentos específicos de uma época, alguns outros temas, considerados universais, se somaram potencializando a importância do vampiro em nossa cultura.
Acredito que uma das explicações para nosso fascínio tenha a ver com a figura apresentada na narrativa de John Polidori. Inspirado em Lord Byron, o personagem de Polidori se distanciou da aparência horripilante e se transformou num homem de bons modos. Trouxe consigo o apelo erótico que ronda esse universo até hoje. Um monstro sedutor de boa aparência pode abater suas vítimas com maior facilidade.
Outra explicação que sempre interessa é o poder da imortalidade. Desde os primórdios, a questão essencial da humanidade é o embate que empreendemos, desde o nosso nascimento, contra a morte. Como não admirar uma criatura que vence esse embate? Como não se fascinar com um ser que atravessa os séculos presenciando migrações, doenças, guerras, ascensão e queda de impérios, e se mantém intacto para recordar? Tais implicações, é claro, não se reduzem ao terreno do horror. Imbricam-se na filosofia e na psicanálise. Não são à toa tantas homenagens literárias aos vampiros. Toda obra de horror, se você analisar nas minúcias, demonstra conflitos que transbordam para fora do gênero e alcançam as grandes questões da humanidade.
Obscuro é uma bela contribuição de Larissa Prado para o tema do vampirismo. Composto de uma novela e três contos extras, o livro visita os grandes temas presentes nas narrativas vampíricas: a imortalidade, o sexo, e a moralidade em contraponto ao nosso comportamento animal.
Você pode adquirir Obscuro através deste link.
E tem mais
Também quero contar que o coletivo Nídaba, do qual faço parte, está com um livro de contos em campanha no site Benfeitoria. A coletânea Mal-Ditas sai pela editora Urutau e faz parte da Coleção Alecrim Dourado. A organização é de Úrsula Antunes e os contos presentes são de Andréa Berriell, Bruna Corrêa, Céu Passos, Juliane Vicente, Larissa Brasil, Larissa Prado, Úrsula Antunes, Verena Cavalcante, Victória Haydée, Yasmin Callado e eu (Irka Barrios). Para apoiar, basta clicar aqui.
E mais
O encontro para discutir a segunda parte de Drácula será dia 22/2, às 10hs, via Meet. O grupo é muito interessante, todos trazem questões pertinentes, costumamos nos estender bastante. Dia 22/2 teremos a participação de Cid Valle Ferreira. E a participação de José Francisco Botelho foi tão boa que os Escuromeders querem que ele volte.
Mesmo que a newsletter entre em períodos de remissão, o Clube de Leitura Escuromeders segue ativo o ano inteiro. Ano passado, o Clube discutiu dez obras, com especial interesse por autoras brasileiras contemporâneas. Os livros discutidos foram: Poderes das Trevas; Canção das adagas, de Daniel Freitas; Suja, de Andréa Berriell; Vespeiro, de Irka Barrios; Gritam pássaros em fuga, de Vanessa Amaral; Fotossíntese, de Sinara Foss; Frankenstein, de Mary Shelley; Urutau, de Larissa Brasil; Medeia morta, de Cláudia Lemes; e De cada quinhentos uma alma, de Ana Paula Maia. As obras escolhidas para 2025 são Drácula, de Bram Stoker; O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë; A vegetariana, de Han Kang; Dossiê macabro - insetos (coletânea - vários autores); Voladoras, de Mónica Ojeda; O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson; Seminário dos ratos, de Lygia Fagundes Telles; O novo horror 2 (coletânea - vários autores); Rinha de galos, de Maria Fernanda Ampuero; Irebu, de Larissa Brasil; e Os perigos de fumar na cama, de Mariana Enriquez.
só leitura/discussão boa, só chegar
Feliz leituras novas!
Como sempre sua news e a “abinha a mais” revelam um olhar novo sobre livros e assuntos que adoramos. Amei. Obrigada, Irka Barrios 💜