Reabriu
Três perguntas sobre Canção das adagas, de Daniel Freitas. E na sessão Uma abinha a mais, o furacão Bella Baxter.
Preciso dizer umas palavrinhas. Após meses sem escrever, dedicando tempo e energia para Vespeiro, livro de contos, meu terceiro, lançado em dezembro de 2023 pela DarkSide Books, eu finalmente consegui reorganizar a vida e as prioridades. Continuo escrevendo muito, tenho uma tese de doutorado e dois projetos a finalizar. A linha de chegada (ou o cume, ou o último fôlego, ou o que quer que a gente possa usar como metáfora) está logo ali. Consigo enxergá-la, agora com menos angústia. O Clube de Leitura Escuro Medo não parou, embora essa singela cartinha de notícias sobre o clube tenha sido negligenciada (que feio, dona Irka). O livro de abril é Suja, da autora Andréa Berriell, e o encontro será dia 27/4 às 17hs, via Elos .
É isso, não me sinto segura para fazer grandes promessas, no momento quero pensar que conseguirei escrever por aqui uma vez por mês. A todas, todos e todes inscritos, muito obrigada pela paciência e ao monte de gente nova, obrigada pelo interesse.
Vamos iniciar com o livro de março?
Fiz três perguntas ao Daniel Freitas.
I.B.: Quais foram as inspirações para escrever Canção das adagas?
D.F.: Canção das Adagas, e seu predecessor Quatro Adagas, foram fortemente inspirados pela onda da “Dark Fantasy”, ou Fantasia Sombria (ou Dark Academia, Dark Fairy Tale, Histórias “Edgy”, Fanfic de Anime...). Sendo sincero, o conto original nasceu de uma brincadeira que tentei fazer com os próprios clichês desses gêneros.
“Que ser se enxerga dessa forma tão soberba, como algo tão imponente e soturno, um senhor entre os demais?” A resposta veio quase imediatamente.
Posso citar com tranquilidade as influências de exponentes desse gênero, como as próprias Crônicas de Gelo de Fogo e até mesmo clássicos épicos de Espada & Feitiçaria como Conan e Solomon Kane. As inspirações visuais já vieram mais do áudio visual, toda imagética dele enquanto escrevi foi baseada em games como Bloodborne e filmes de ambientação gótica & vitoriana.
I.B.: Em Canção das adagas, você nos leva a um mundo de crueldade, brigas de gangues, disputa por poder, algo muito humano. Por outro lado, há um pouquinho de afeto. Como foi o processo de enxergar as cenas para a realidade felina? Quais os maiores desafios?
D.F.: Se Quatro Adagas foi escrito calcado na imagem mítica (ou poderíamos dizer “meme”ica) dos felinos, posso afirmar que os comportamentos e atitudes dos gatos foram observados in loco. Adotei uma gatinha um pouco tempo depois de escrever o conto, e tive ao menos dois anos de observação destes comportamentos. Um gato se porta diferente de qualquer outra criatura, suas formas de demonstrar irritação, incomodo e até mesmo carinho e amor são totalmente particulares.
Sua própria existência é contraditória: trata-se de um animal doméstico, que segundo especialistas, nunca foi totalmente domesticado. Um animal que possui musculatura, sentidos, força e resistência, dadas as devidas proporções, similares aos caçadores mais eficientes e letais do mundo animal. Mas ao mesmo tempo, são companheiros carinhosos e leais, extremamente sensíveis aos sentimentos e emoções de seus pares.
Dessas contradições tão fascinantes nasceu a Canção das Adagas, que ainda mantém o tom de brincadeira do conto original, mas com uma infinidade de novas camadas e detalhes que até mesmo as pessoas que nunca conviveram com um bichano podem captar. Principalmente porque, mesmo com a antropomorfização destes personagens, é evidente que suas atitudes diferem muito das de um ser humano. Afinal, mesmo que complexos, eles ainda são animais, e mantêm em si a pureza de serem governados por seus instintos mais primais, sejam eles para matar ou amar.
Daniel Freitas e sua musa inspiradora
I.B.: Sua escrita passeia por diversos gêneros: horror, terrir, fantasia e ficção científica. Essa fluidez ajuda ou atrapalha na hora de divulgar ou chegar ao público específico?
D.F.: Gosto de brincar que meu estilo de escrita é a “podrera”. Tento sempre produzir algo que dispense o refinamento estético e se foque na profundidade dos sentimentos a serem transmitidos, que podem ir do humor leve até o asco profundo. Em suma, meu maior compromisso é escrever, impreterivelmente, histórias que eu gostaria de consumir.
Eu já refleti algumas vezes sobre como um foco maior em certos gêneros poderia me ajudar a formar uma rede mais sólida de leitores, e até acredito que isso pode ser verdade. Contudo, sinto que me prender a algo especifico seria uma pequena traição com a minha própria escrita, pois sinto que existem formas de passar estes sentimentos profundos que são amplificadas por certos gêneros ou estruturas de histórias. Além disso, também acredito que a melhor forma de se criar uma base de leitores é sendo totalmente sincero com sua escrita, e mantendo a constância. Seja na literatura ou na vida, nada supera a verdade e a paciência.
Sala cheia para discutirmos Canção das adagas
Você pode assistir ao encontro que discutiu Canção das adagas através deste link.
Uma abinha a mais
Para tentar me redimir, trago textão na sessão Uma abinha a mais de hoje. Um textão não, três textinhos com análises sobre aspectos de Pobres Criaturas. Aconteceu assim: escrevi um texto para a Ventanas e no mesmo dia tive acesso a outro texto, publicado pela Laleska Walder. Conversamos, empolgadíssimas. Precisávamos falar mais e, inclusive, combinar uma live. Pois bem, nossa live acontecerá na terça-feira, dia 23/4, às 19 horas no Instagram.
Abaixo, os textos que escrevemos sobre o filme:
Pobres Criaturas e a dualidade da vida & morte
por Laleska Walder
Inicio o texto com o presságio da antológica Anaïs Nin, reproduzido com breves alterações: “A realidade não me impressiona. Eu acredito na intoxicação, no êxtase, e quando me defronto com uma vida ordinária, minha escolha é escapar, de um jeito ou de outro. Sem muros”.
Em meio a crescentes polêmicas e imerso a críticas de diferentes públicos, talvez um dos aspectos mais esquecidos de Pobres Criaturas (2023), filme do diretor grego Yorgos Lanthimos, seja justamente o seu ponto principal: a dualidade da vida e da morte.
Na trama iniciamos o contato com a história de Bella Baxter, uma jovem de origem desconhecida que divide seus dias em meio a uma grande Casa/Laboratório (ou gaiola, referência sempre presente) com Deus — seu criador.
Deus, um grande cientista afeiçoado pela ideia da evolução humana (entre muitas aspas), trata Bella como parte de um experimento pessoal. A personagem vive seus dias para alimentar a pesquisa científica, como cobaia de uma inovação tecnológica.
A verdade é descoberta depois, ocasião em que o telespectador entende que o corpo de Bella pertencia à sua mãe, uma mulher havia se suicidado. No momento da morte de sua genitora Bella ainda estava em seu ventre, e seu cérebro foi implantado no corpo materno já sem vida.
Uma ideia macabra para muitos — principalmente aqueles que se recusam a desprender-se da narrativa moralizante ou racional que Lanthimos brilhantemente repudia (e o faz em todas suas obras) — porém demasiada simples, se observada com clareza: Bella possui a chance da vida pelas mãos de Deus, que recolhe o cadáver de sua mãe e o leva para o seu laboratório.
Desde o momento de seu despertar à vida, Bella escolhe viver. E essa escolha — antagônica à de sua mãe — é repetida em todos os arcos do filme. Bella escolhe a vida em detrimento da morte quando decide sair de seu cativeiro e explorar um mundo desconhecido. Decide casar-se, porém quer experimentar vivências antes do matrimônio. Faz a escolha ao rejeitar dogmas e etiquetas de conduta social, que esmagariam seu espírito inerentemente livre.
Em muitas cenas a personagem demonstra saber mais da vida do que os demais; denunciando e expondo nossos costumes ao ridículo — as regras de etiqueta, as normas de convivência, as pequenas hipocrisias sociais as quais nós, mulheres, somos ensinadas a nos enquadrar. “Por que devemos manter algo na boca se é desprezível?”
A protagonista decide viver pois, ao contrário da mãe, fez todas as escolhas que direcionam à vida. A vida vivida em sua completude: do moral ao imoral, do belo ao grotesco, do bom ao vil. Bella nos ensina que viver é subversivo, e que acatar as normas socialmente impostas é exterminar o gozo e executar a alma feminina. É, pois, a caminhada derradeira à morte. (Aqui lembro de Emma Goldman, em “se não puder dançar, não é minha revolução” — quem assistiu a obra entenderá o contexto).
O diretor brinca com essa dualidade ao colocar em cena a história de duas mulheres que dividiram o mesmo corpo, mas o usaram para propósitos tão distintos. Cada qual direcionando-se a um viver e a um morrer, não obstante entranhadas quase que ao mesmo tempo e espaço.
Talvez esse seja o retrato mais fiel do filme, e um singelo recado às mulheres cativadas pela sua trama. Assim como Bella, há de se escolher viver por inteiro, ainda em que em um mundo rodeado por gaiolas visíveis e invisíveis. No mais, é preciso estar sempre atenta (Rosa Luxemburgo já nos avisava há muito tempo: quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem).
Trechos do texto da revista Ventanas (27/3)
por Irka Barrios
A frase que mais ouvi neste mês de março foi “você precisa assistir”. Um amigo querido reforçou “tem que ser no cinema, nada de streaming”. E assim, através da tela do cinema, fui apresentada a Bella Baxter, a personagem que inspira reações passionais. Não pretendo ficar de fora, também quero dizer umas coisinhas.
Bella vive a fase do aprendizado: aprende a se locomover, a falar, a sentir o mundo que a rodeia. Segue o pai com a devoção de uma criança. Ressente-se das ausências dele.
Ela não demora a atingir a pré-adolescência, fase recheada de questões incômodas. E é claro que a maioria dessas questões tem fundo sexual. Bella se descobre um ser sexual na mesa, durante o café da manhã.
O caso é que seu cérebro não teve tempo ou oportunidade de absorver as amarras que nos tornam seres sociais. Na mesa do café, Bella encara a masturbação como uma brincadeira muito gostosa. O pai (ou tutor), um tanto preocupado com os perigos que um ser tão ingênuo pode enfrentar no mundo, trata de arranjar um noivo. É a transmissão da responsabilidade, alguém precisa conter os ímpetos da criatura sem freios.
Bella Baxter despreza a obediência, acata o noivado mas não o domínio. Compreende as relações afetivas como algo dissociado das relações sexuais e parte para o mundo com Duncan, um aventureiro que enxerga em Bella uma parceira descartável.
E então chegamos à cena da dança, uma representação das tentativas de domínio sobre a mulher. Descontrolada, desconhecendo as possibilidades de seu corpo embalado pela música, Bella avança pelo salão. Dança sozinha, até que Duncan intercede, juntando-se a ela. Nervoso, ele tenta conduzi-la, amansá-la. De novo, ela recusa o domínio, ainda que aceite a parceria. Ele insiste, se impõe, recorre à força. Faz o que considera necessário para controlá-la.
Você pode ler o texto completo da revista Ventanas aqui.
Outro texto, de hoje, traz
(mais) uma questão incômoda
por Irka Barrios
Mais um texto sobre Bella Baxter, a personagem merece inúmeros ângulos de visitação. Quando compreendi o alcance da abordagem, uma faísca de curiosidade se acendeu: como o filme lidará com situações de sexo forçado? E em caso de violência, Bella aceitará? Revidará? O estupro afetará sua inocência? Bella sucumbirá frente à força física masculina? Entenderá o estupro como uma agressão comum ou compreenderá que se trata de uma violência mais covarde, uma demonstração de poder que despertará sua culpa e sua vergonha e gerará o trauma de uma vida toda?
O filme, quem sabe por se encaixar no gênero fantasia, absteve-se desse desdobramento. A escolha, penso eu, torna-o inverossímil. No momento em que Bella decide trabalhar no bordel, seu risco de sofrer um crime sexual aumenta exponencialmente.
Li diversos textos a respeito, alguns defendendo que Pobres criaturas é um filme feminista. Concordo em parte. No momento de tratar dos aspectos da mulher que busca viver sua sexualidade sem estar submetida a homem algum, acho que sim, é feminista.
Porém, no momento de lidar com a relação heterossexual, o filme peca. Mostra-nos a mulher como o ser que deve se submeter. A maioria das cenas de sexo diz respeito ao prazer masculino. Compreendo que a profissão de Bella tenha o objetivo de satisfazer os homens que frequentam o bordel. Não deixemos de lado, entretanto, que o filme se trata de uma fantasia, e as boas fantasias tensionam expectativas. Nas cenas em que recebe clientes em seu quarto, uma dúvida não parou de rondar minhas ideias: Bella goza? Seguindo a lógica do filme, a personagem deveria gozar em todas as relações; seguindo a lógica das estatísticas do mundo real, Bella apenas proporciona o gozo aos homens que a visitam. E é claro que aqui podemos dar o crédito à fantasia, confiando que sim, Bella goza em todos os encontros. O ponto é: que lógica é subvertida quando se reafirma a cultura do patriarcado? Meu argumento ganha corpo logo a seguir, durante a relação homossexual que Bella experimenta com sua colega de trabalho. É a única cena em que aparece o sexo oral, e ali o orgasmo está presente. A reação da personagem é indiscutível.
Como está óbvio, Pobres Criaturas é um filme que não se esgota tão facilmente. Há muitos fios a puxar, e pretendemos ampliar a discussão na live de terça à noite.
Para finalizar,
O que estou lendo
Desilusão de ótica, da Úrsula Antunes
Cazadores de ocasos, de Miguel Vedda
A pista de gelo, de Roberto Bolaño
Jane Eyre, de Charlotte Brönte
Suja, de Andréa Berriell - livro de abril do Clube de Leitura Escuro Medo, link de acesso ao grupo de WhatsApp aqui.
Besitos.