"Roxo", de Andréa Berriell
Nossa leitura do mês de abril é um livro policial recheado de elementos bem surpreendentes nesse tipo de narrativa. Vem comigo descobrir quais são eles.
Você já leu um livro policial em que a maioria das personagens são mulheres? Não? Então surpreenda-se com “Roxo”, um livro de crime, mistério e investigação em que mulheres tomam lugares historicamente ocupados por homens (na vida real e na ficção).
Para mergulharmos fundo no universo de “Roxo”, convidei a autora para responder três perguntas:
Irka Barrios: Estava muito curiosa para saber quais foram as motivações para escrever uma obra que respeita as regras do romance policial clássico e apresenta, em contrapartida, um olhar inovador sobre o tema.
Andréa Berriell: Cada personagem tem sua motivação. A minha, para criá-las, foi resgatar fundo, no meu coração-corpo-alma, o que dói: a desigualdade social, a misoginia, o racismo, a transfobia, o machismo. Tudo isso dói e mata. O patriarcado e o capitalismo são predatórios. Por tudo isso, minha motivação foi escrever sobre mulheres livres, que poderiam, através do meu trabalho, ocupar (e se posicionar em) qualquer lugar da narrativa. Não precisariam estar só nos lugares de sempre: da princesa, da vítima ou da heroína impecável. Não suporto personagens planas, gosto de gente, de complexidade, de defeitos, de hesitações. No Roxo elas poderiam dar vazão às suas forças e pulsões mais secretas. Eu me comprometi com elas: jurei que não as julgaria, e não julguei. Também decidi juntar mulheres de várias gerações, mulheres muito jovens a mulheres mais velhas: Olga (65±), Denise (45±), Francesca (28±), Sabine (23±) são as policiais. Mas tem muitas outras mulheres importantes na trama, só lendo... Todas são preciosas para mim, uma mulher de sessenta, setenta que vibra sexualidade, a despeito do corpo que perde a elasticidade e ganha outro tipo de beleza, tão pouco valorizada; uma mulher de quarenta ou cinquenta que se permite tudo... O lado insano delas me estimulou a cavar mais fundo. Elas encaram os próprios abismos e vivem a tensão entre refrear e viver as pulsões delas, as subjetividades em fricção umas com as outras.
Irka Barrios: “Roxo” tem elementos caros ao universo ficcional que trabalha os assassinos em série. O olhar admirado para a arte parece ser um ponto de convergência. Conta melhor sobre essa característica que fascina tantos leitores. E fala das imagens que te inspiraram na criação da história.
Andréa Berriell: Tudo começou com uma imagem coagulada, que aos poucos foi ganhando nitidez e movimento: num banheiro muito antigo, algumas meninas se lavavam numa banheira branca esmaltada, daquelas com pés de ferro fundido. E outras meninas aguardavam na fila, algumas já nuas e encolhidas de frio, outras despindo as fantasias de papel crepom que amontoavam num canto. Eu via os pés delas tocando o piso de ladrilhos hidráulicos e a paisagem da fazenda através da janela de vitrôs. A água foi se tornando colorida, por causa do papel crepom: vermelho, depois roxo até chegar a um cinza chumbo, já quase fria. As meninas eram escoteiras, nesse momento me dei conta que aquela imagem era uma lembrança de infância. Minha mãe me enviou para um acampamento aos seis anos. Minha prima foi comigo, ela tinha oito anos. Nós éramos as mais novas naquele lugar, as outras eram crianças de 10 ou 11 anos ou adolescentes e ninguém estava nem aí conosco. Não é preciso dizer que éramos as últimas na fila do banho, em todas as filas. As superfícies daquele banheiro refletiam e faziam reverberar os sons e as imagens. Tinha uma sensualidade dos corpos se descobrindo; querendo olhar e descobrir outros corpos. Quando somos crianças e adolescentes, é uma maneira de enxergarmos nosso próprio reflexo. Lembro que senti medo, frio e fome como nunca antes, mas saí renovada, a experiência do acampamento, profunda me transformou. Minha mãe conta que quando me buscou na ferroviária de Bauru, eu tagarelava sem parar sobre as aventuras, nem parecia a mesma criança tímida e silenciosa que ela colocou no trem. Então era recorrente: eu via a cena do banho, emanava um calor dela, tinha uma beleza que me comovia, mas eu conseguia ver a fragilidade daquele lugar e daquela estrutura. As meninas estavam à sua própria sorte. E eu podia ouvir o ressonar de um monstro. Ele vivia nos bosques ao redor daquela casa antiga de fazenda, um monstro que entrava no porão e espiava as meninas pelas frestas do assoalho. Então essa cena e as reflexões que fiz sobre ela, começaram a aparecer muito nos meus pensamentos no início de 2018, quando eu estava lançando o meu primeiro romance, o Mulheres que plantam a Lua. Daí quando me perguntaram qual seria o próximo trabalho, eu disse que seria um livro policial chamado ‘Papel crepom’. Saiu da minha boca meio sem pensar. No dia seguinte me sentei e comecei a escrever. Demorou mais de um ano para ele mudar de nome e virar ROXO.
Logo no início do processo eu pensava muito na Ofélia, como uma alegoria. Sabia que o assassinato de uma das monitoras aconteceria naquela banheira, como se fosse uma performance. A imagem da Ofélia descrita no livro é de uma imobilidade e de uma ingenuidade assustadoras. A Marcia Tiburi tem um texto que fala da Ofélia, como a mulher morta, que não assusta os homens, pois está imóvel, destituída da sua vontade e da sua liberdade. Na hora pensei: como isso é contemporâneo! Então, os assassinatos de Roxo são cenários das mortes elaborados na água como obras de arte inspiradas na obra do John Everett Millais, um pintor rafaelita que retrata Ofélia. A morte na água é feminina, as águas são repletas de fertilidade, os cenários são feitos de murmúrios, gorgolejares e delicadezas vegetais.
Irka Barrios: E já que falamos em expressões artísticas, conta para nós com que obras “Roxo” conversa.
Andréa Berriell: O livro conversa com muita coisa. Em arte é sempre assim, né? Arte é esse campo de conexões infinitas, é essa plataforma que tudo transforma, sempre extraindo o sumo do que já existe, do que vimos e vivemos. Sou arquiteta, pintora e escritora (em qualquer ordem). Por muito tempo tentei separar essas esferas, mas elas são ligadas por raízes muito fortes. Antes, sou como todo mundo, vivo imersa nas arquiteturas e paisagens; sou alguém que chorou de soluçar em frente a uma pintura do Diego Rivera e de uma do Modigliani e alguém que extrai muito prazer da leitura. Nem a escrita me proporciona tanto prazer quanto a leitura. Soltei as rédeas em Roxo, deixando tudo fluir misturado, se retroalimentando. Vou falar das principais obras, aquelas que eu senti se movendo dentro de mim enquanto escrevia:
Filme: Silêncio dos inocentes (1991).
Série: La trêve (2016).
Literatura: Crime e Castigo e Os Irmãos Karamazov (1986 e 1879, Dostoiévski), Mares do Sul (1979, Manuel Vázquez Montalbán), e todos os textos da Marguerite Duras, todos os livros da Agatha Christie e os poemas do W. H. Auden.
Sobre as músicas que inspiraram o romance: Don’t Stop Me Now (Queen), Bachianas brasileiras n. 4 (Vila-Lobos), Quase sem querer (Legião Urbana), Concerto para violino n. 3 (Mozart), Lilac Wine (Nina Simone), I’ll Be Your Mirror (The Velvet Underground), Can’t We Be Friendes? (Ella Fitzgerald) e muitas outras. Fiz uma playlist (ouça aqui). O Roxo, para mim, sempre teve som, as cenas iam se desenrolando na minha imaginação como num filme com trilha sonora. As cenas todas foram embaladas por essas músicas, seus ritmos, mistérios. De uns tempos para cá experimentei um período ainda mais musical, o Amor nos transforma como a Arte, deixa uma melodia que segue conosco.
A notícia boa é que “Roxo” é uma tetralogia. A autora afirma que as obras seguintes já têm título: “Azul”, “Gris” e “Rosa”, todas as cores que tomam o céu durante uma tempestade.
Berriell, também, tem trabalhos publicados na Amazon. São contos presentes em coletâneas organizadas pelo Clube de Leitura Escuro Medo e pela Nídaba Coletivo. E no momento se dedica à escrita de uma novela com o título “Suja”.
Encontre a autora pelo Instagram @andreaberriell
Adquira a obra (com desconto, usando o cupom ESCUROCLUBE22) no site da Editora O Grifo.
Eu amei a entrevista e de conhecer mais sobre o processo de Roxo. ♥️
Está na minha lista para leitura!
Esse livro parece bom demais e adorei a conexão com as cores da tempestade