Três perguntas para Verena Cavalcante, autora que imprime fúria e paixão em seus textos
Inventário de predadores domésticos foi a leitura de janeiro do Clube. Na sessão Uma abinha a mais, a arte dos museus e a treta de Indiana Jones
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I.B. A infância e seus demônios é uma temática bastante presente em teus textos. Imagino que você recorra a experiências (próprias ou compartilhadas) que passam pelo filtro da memória e depois pelo filtro da ficcionalização para desaguarem em textos que muitas vezes são bem incômodos. São lugares difíceis de visitar? Qual o custo emocional para histórias tão pungentes (se é que há)?
V.C. Em 2012, quando comecei a escrita desses contos e decidi me debruçar sobre essa questão — os horrores da infância —, eu pretendia elaborar algumas das minhas lembranças mais dolorosas e, ao mesmo tempo, desconstruir a infância enquanto um lugar paradisíaco, de inocência e leveza, abordando a maneira como se desenvolviam os traumas de infância. Na época, aliás, eu vivia atormentando meus amigos, era até engraçado; estávamos na mesa de bar, vendo um filme, jogando um jogo de tabuleiro, e eu interrompia a atividade e perguntava: “Qual foi a pior coisa que te aconteceu na infância?” ou “Me conta um trauma de infância.” (Infelizmente, nunca contaram, então não pude me valer deste super material de pesquisa, risos.) Logo, acabei utilizando não só a minha própria experiência e perspectiva, mas também me baseando em histórias que ouvia de familiares e conhecidos, que presenciava no cotidiano (quem foi criança nos anos 90 se lembra do quanto vivíamos “soltos”, brincando pelas ruas, e por isso tínhamos um contato mais precoce com a violência do que as gerações mais jovens), ou mesmo por meio de notícias escabrosas nos jornais. Mas sim, por se tratar de um período da vida que é comum a todos nós — ecoando eternamente, sempre vivo e à flor da pele —, um dos momentos em que nos vemos mais vulneráveis e sujeitos à exploração e violência, entender o quadro geral das microviolências e das violências escancaradas, e observá-lo quase como através da lente de um microscópio, é, de fato, algo bastante incômodo. Há, realmente, um grande custo emocional. E ele cobra seu preço de mim sempre que escrevo. Brinco que só consigo escrever se eu estiver sofrendo; e, com efeito, acessar essas dores que, muitas vezes, escondemos no subsolo da mente é um trabalho de escavação extenuante — exige chorar de boca aberta. Às vezes, ao narrar sobre crianças em situações de abuso, sinto como se eu estivesse observando um acidente na estrada; analisando a extensão dos ferimentos, os ossos expostos, os olhos mortiços dos cadáveres. Não é uma experiência agradável, porém é necessária e clama por ser escrita.
Verena Cavalcante
I.B. Pergunta meio batidinha, mas vá lá: as influências, da vida e de Inventário de predadores domésticos (pode ser audiovisual, arte: escultura, pintura, música, etc)
V.C. Acho esta uma das perguntas mais difíceis que costumam fazer. O que influencia a escrita? Tudo. Viver. As histórias que as pessoas contam, a natureza e seu poder implacável de transformação, o mundo invisível e subestimado dos insetos, a forma como andamos por aí em um cemitério a céu aberto, repleto de carcaças e despojos de bichos. Obituários e fotos cemiteriais, pesadelos e distúrbios do sono. A arte e seu poder de catarse. A arte e seu poder de salvação. Na literatura, meus autores favoritos: Angela Carter, Shirley Jackson, Grady Hendrix, Lygia Fagundes Telles, José Mauro de Vasconcelos, Hilda Hilst, Mariana Enríquez, William Faulkner, Clarice Lispector, María Fernanda Ampuero, Gabriel García Márquez, Svetlana Aleksiévitch, Elena Ferrante, Anne Sexton, Samantha Schweblin, Mónica Ojeda, Fernanda Melchor, Antonio Carlos Viana. No cinema, meus filmes favoritos: Santa Sangre (Alejandro Jodorowsky, 1989), Vá e Veja (Elem Klimov, 1985), Contraponto (Terry Gilliam, 2005), O Homem de Palha (Robin Hardy, 1973), A Hora do Lobo (Ingmar Bergman, 1968), A Companhia dos Lobos (Neil Jordan, 1984), Projeto Flórida (Sean Baker, 2017), Aracnofobia (Frank Marshall, 1990). Na música, meus cantores e grupos favoritos: Joanna Newsom, Mariee Sioux, Johnny Cash, Clube da Esquina, Belchior, Jean Ritchie, The Smiths, Cartola, The Cure, Siouxsie and the Banshees, Chico Buarque, Secos & Molhados, Nico & The Velvet Underground. Nas artes plásticas, meus artistas favoritos: Aleksandra Waliszewska, Diego Moreno, Hanna Jaeun, Mark Gleason, Antonio López García, Kikyz.
Inventário de predadores domésticos (Dark Side Books, 2021)
I.B. Você (e tantas outras autoras brasileiras) reivindicam (com muita razão) um lugar mais próximo ao das autoras latino-americanas que estão produzindo horror pelo nosso continente. Em que ponto a tua prosa se aproxima de nossas hermanas e em que ponto se afasta?
V.C. Esta questão é bastante delicada, né? Não diria que reivindico o direito de ser considerada uma autora de horror latino-americana porque eu sou uma autora de horror latino-americana. Chega a ser absurdo como os críticos, outros autores, os próprios leitores, aliás, se “esquecem” que o Brasil faz parte da América Latina ao listarem as autoras de horror do continente. Há muitas loas às autoras latinas — e com razão, pois são espetaculares —, enquanto existe, simultaneamente, um apagamento das autoras brasileiras. Vivemos no mesmo território, porém, é quase como se fôssemos invisíveis dentro do nosso próprio país. Penso que isso seja sintoma da síndrome de vira-lata que nos acomete desde sempre, quase como se o que produzimos aqui não tivesse o valor e a qualidade do que se faz lá fora. Há grandes autoras produzindo textos potentes e brutais, que merecem destaque — como a própria Irka Barrios que me convidou para esta entrevista, entre outras —, mas, no entanto, não existe interesse na nossa literatura como existe na literatura dessas autoras estrangeiras. Então, chegamos a um impasse. Deveríamos reivindicar nossa existência? Ou simplesmente existimos e seguimos fazendo nossa arte e esperamos que um dia alguém nos note?
Acho que minha prosa se aproxima da prosa das “hermanas” por abordar um viés menos fantástico e mais realista do horror, focando mais nas questões da violência social e urbana e da violência de gênero. O nosso horror é o horror da violência da carne, o horror de andar por aí sabendo que os dentes do mundo estão prontos para nos devorarem. O que a distancia, por outro lado, talvez seja o regionalismo que gosto de utilizar nas minhas narrativas, a oralidade carregada de sotaques e maneirismos, as referências diretas à cultura brasileira, as gírias e expressões populares que são muito próprias do nosso país.
O Clube de Leitura Escuro Medo debateu o livro de Verena Cavalcante em janeiro e você pode assistir à gravação aqui.
Uma abinha a mais
Tudo vira bosta?
Citei a rainha Rita Lee na newsletter passada e volto, hoje, com a voz dela ecoando por aqui. Fui um pouco radical, confesso. Não quero que tudo, tudo, tuuuuuuuuuuuudo vire bosta. Quero que os grandes feitos, as grandes obras, os grandes sonhos persistam. A gente precisa de história, de memória e de cultura. E já inicio a abinha indicando o texto da Priscila Pasko sobre a descaracterização das cidades pela força da especulação imobiliária, que não é bem o tema da abinha, mas fala da desvalorização dos espaços públicos e lá adiante vai fazer sentido.
Ainda não tenho opinião formada sobre o vídeo da Volks. Mas vou tomar novo impulso e dizer outras coisas que acho importantes, agora não mais sobre expressão artística. Quero falar sobre arte, onde encontrá-la. E por que.
Indiana Jones
Indy, o arqueólogo bonitão, amor da minha adolescência. Ele era sexy e idealista. Lembro de Indy vencendo perigos no último segundo, saindo ileso após uma bola gigante quase esmagar seu corpo em forma. Bom, existem muitas críticas ao personagem do mundo rico que sai em busca dos tesouros espalhados pelo mundo pobre porque difundiu-se a ideia que terceiromundistas não teriam condições de cuidar de suas obras.
A matéria da Sumaúma Jornalismo problematiza essa visão do homem branco salvador da arte que a resgata e a guarda no devido lugar: o museu de algum país rico.
Como eu torço por polêmicas saudáveis, não posso deixar de falar do outro lado da situação.
Huaca Pucllana
Visitei o Peru em 2017. Sempre quis conhecer Lima, imaginava que me sentiria muito bem lá. Apesar do céu nublado (chamam-na la fea porque quase não faz sol) Lima é uma cidade vívida, colorida, complexa, caótica. Quase o oposto de Santiago, que é o filho certinho de Lima. A história escrita por mãos brancas conta que os militares Inês e Pedro fugiram de Lima para viverem seu amor num povoado mais ao sul, e assim fundaram Santiago (a homenagem a esse casal interessante está em Lauren, outra hora eu conto).
A questão é que em Lima, Miraflores, há uma duna gigante. O que faz essa duna no meio de um bairro residencial?, quis perguntar, mas o guia era o gravador do ônibus que leva aos pontos turísticos. Decidimos voltar no dia seguinte. A duna era nada menos do que uma pirâmide construída pela civilização pré-incaica. (Respira. Tempo para nos recuperarmos da emoção que nos atingiu). Perguntamos tudo: as escavações iniciaram nos anos 1980 e se estenderão por mais trinta anos. Metade foi descoberto, falta muita coisa. A guia, agora de carne e osso, explicou que os recursos são tímidos, por isso tudo tão lento. As escavações demonstram a forma da construção somente de um lado. Quem passa no outro quarteirão só vê uma duna mesmo. Antes do interesse arqueológico, a suposta duna serviu como pista de motocross.
E mais: há uma cidade, a cerca de 40 quilômetros de Lima, um sítio arqueológico que se chama Caral. Acredita-se que aquela organização de pessoas em forma de cidade data de cinco mil anos atrás. Tão antiga quanto a Mesopotâmia. (Respira. Eu adoro falar nisso, é algo que faz meu coração acelerar).
Templo de Dendur
E por que falar nisso? Bem, porque essa história de Indiana Jones ser o ladrão malvado me pega um pouco. Há, no Metropolitan Museum, um templo inteiro. Trazido do Egito, o Templo de Dendur está exposto numa ala envidraçada do museu. Não é uma escolha aleatória, foi disposto desta forma para que Jaqueline Kennedy o enxergasse da sacada de seu apartamento. Foi ela, inclusive, que interveio para que o templo fosse levado aos Estados Unidos. A explicação do museu deixa qualquer terceiromundista em dúvida: estava abandonado, com as paredes pichadas, suscetível a inundações.
E agora, Indy? Como ficamos?
Tem mais: sobre exposições de arte e outras questões, recomendo a última newsletter do Cristhiano Aguiar. Conversa super com esse papo.
E tem mais: cinco integrantes do Clube de finalistas do Prêmio Odisseia da Literatura Fantástica 2023. Parabéns finalistas Juliana Cunha, Talita Grass, Juliane Vicente, Leonardo Oliveira e Matheus Borges.
E mais: um passeio imperdível é visitar a exposição Smart lights no Farol Santander. Uma das obras (agora vou me exibir) é da Sabrina Barrios.
O que vem por aí: lançamentos e pré-vendas para acompanharmos de perto: Espero que eu não me apaixone por você, romance de Cesar Alcázar (Avec Editora); Uma oração para ninguém, romance de Larissa Brasil; Nos beats do coração de um musaranho, poesia de Vitória Vozniak (7 Letras); O tempo é o que acontece na ausência do infinito, romance de Harini Kanesiro (Caos & Letras);
E na próxima newsletter: Entrevista com Daniel Gruber, autor do romance A noite do cordeiro, a próxima leitura do Clube. Para ingressar no grupo de WhatsApp, clique aqui. E mais reflexões sobre a arte, as esculturas de Isabelle Albuquerque, A grande beleza (Paolo Sorrentino, 2013), Alana em apuros (Carolina Fin Simionatto, Ed. Bestiário, 2023) e a Barbie (Greta Gerwig, 2023).
Eu quase ia esquecendo de falar na minha atual fascinação por árvores. Na Revista Ventanas tem duas microcrônicas sobre o assunto. Nesse mês em que comemoramos dois anos da revista, publico a terceira microcrônica para fechar a trilogia.
Conteúdo sempre excelente (e obrigado pela citação)!
amo essas suas neww <3