Tudo vira bosta
Alô, alô, marciano, aqui quem fala é da Terra planeta Água e a newsltetter vem toda musical. Em junho, Escuromeders debateram Vespeiro. Andréa Berriell mediou.
Voltei a gravar, caso você prefira ouvir o texto.
Informações sobre as leituras do Clube abaixo. Mas antes, novas impressões sobre a enchente.
Uma abinha a mais
Na quarta semana, conseguimos entrar em casa. A água empoçada no terreno de dentro do condomínio havia escoado, embora o entorno seguisse submerso. Ansiosos por entrar, olhar, calcular o tamanho do estrago, recorremos ao novíssimo serviço de transporte do bairro: os caminhões do exército. No início tudo funcionava no sistema de carona, era só acenar e o caminhão parava, não importa a missão que estivesse cumprindo. Depois, quando o movimento de moradores em retorno às casas aumentou, os militares organizaram um itinerário. O fim da linha era a agência dos Correios, local que acabara de se tornar uma praia onde as ondinhas provocadas pelos barcos e pneus aro 22,5 morriam. Jovens, adultos e idosos, todo mundo aceitava o braço forte e mão amiga que o exército brasileiro estendia para nos ajudar a subir na caçamba do caminhão.
Foi nessa semana que o lixo começou a se acumular.
Descarte após descarte, os montinhos de lixo se tornaram montanhas. Compreendíamos o acúmulo, era difícil o poder público fazer a coleta com o alagamento persistente. Descartamos mais e esperamos. Dias depois, a prefeitura anunciou que as bombas de drenagem haviam cumprido seu papel. Comemoramos e descartamos mais. A montanha de lixo tomou formas perigosas, tábuas cheias de pregos se acumulavam por cima de frágeis recipientes de plástico. Reconfiguramos a forma, separamos objetos menores e criamos caminhos para carros e pedestres.
as ruas tomadas de protestos
Amanhã a coleta vem, sonhávamos. Mas quem chegou no dia seguinte foram os garimpeiros, gente que escalava a montanha de lixo em busca de coisas que ainda prestavam. Garimpeiros diminuíram a montanha, mas não tanto. A maioria das coisas não se aproveitava. Na sexta semana, a prefeitura anunciou novas chuvas e então nos desesperamos. Os resíduos e o lodo continuavam lá. Mais uma vez, juntamos voluntários para limpar e desobstruir as tubulações. A base da montanha de lixo tomou uma forma piramidal. De longe, admiramos a construção. Parecia obra de povos ancestrais.
Ratos e urubus: larguem a minha fantasia
Em 1989 Joãosinho Trinta revolucionou os desfiles das escolas de samba trazendo o lixo para a Marquês de Sapucaí. A alegoria do Cristo mendigo, após embate com a Igreja Católica, precisou ser ocultada dos olhares do público. Coberto por um manto escuro, o Cristo censurado desfilou em cima de um carro alegórico rodeado de entulho. Afrontoso, o carnavalesco enfaixou a imagem com a inscrição “Mesmo proibido, olhai por nós”. Já não era necessário que o público enxergasse o Cristo para saber do que se tratava, e isso tornou a mensagem ainda mais impactante.
pois é
A imaginação, escritores de horror bem sabem, opera com intensidade maior que a visão. É o válido ensinamento que nos diz que imaginar o monstro é mais assustador do que vê-lo.
Como era de se esperar, a Beija-Flor venceu o campeonato daquele ano. Havia vencido na pesquisa popular realizada após o desfile, depois venceu no júri especializado. (Mentira, ficou em segundo lugar, após empate com a Imperatriz Leopoldinense, escola também conhecida por seus desfiles luxuosos).
Sai do lixo a nobreza
Euforia que consome
Se ficar, o rato pega
Se cair, urubu come.
Apesar de abordar essa nova perspectiva, Joãosinho Trinta é lembrado como o carnavalesco que trabalhava o luxo na avenida. É dele a polêmica frase “Quem gosta de miséria é intelectual. O povo gosta de luxo”. E eu acho que sim, por mais que o acúmulo de lixo e seus desdobramentos tenham provocado inúmeras inquietações (somos todos intelectuais em algum grau), pude notar, desta vez in loco, o quanto viver em meio ao lixo é degradante. Não há otimismo que resista a uma rua tomada de detritos. Não há bom humor que sobreviva ao mau cheiro. Não há linha de pensamento que persista frente à disseminação de pequenas pragas.
E por mais que a ação dos garimpeiros me causasse certo alívio – um vislumbre sobre a lei de conservação das massas de Lavoisier –, por mais que eu me flagrasse cantando Tudo vira bosta (o rockzinho que Moacyr Franco compôs para Rita Lee), sei que o plástico se degradará depois que eu, você, nossos políticos e esse texto virarem bosta. E enquanto a transformação não ocorre, os resíduos ocuparão os leitos dos rios, os mares, poluirão as florestas e se depositarão nos estômagos dos animais que os confundem com alimento.
Desculpa, até aqui não consegui uma mensagem otimista.
…
Pensando bem, tem mensagem boa sim. O presentão dos Escuromeders: o encontro de junho foi para debater Vespeiro, e você pode assisti-lo aqui.
Aproveito para explicar um pouquinho o funcionamento do Clube para quem chegou nos últimos dias:
Estamos em atividade desde junho de 2021. Isso mesmo, o Clube de Leitura Escuro Medo acabou de completar três anos. Iniciamos com a proposta de ler obras clássicas de horror, mas aos poucos, conforme os interessados começaram a chegar, direcionamos o olhar também para a produção contemporânea. Até novembro de 2022, a mediadora (eu) indicava e votava nas obras selecionadas. A partir de novembro passado, mudei. Deixo as escolhas para os Escuremeders, tentando influenciar o mínimo possível. Não há exigências, e tentamos mesclar clássico e contemporâneo, nacional com internacional. Tem funcionado, a votação ocorre sempre em novembro. O próximo livro a ser discutido é Gritam pássaros em fuga, da autora Vanessa Amaral. Em agosto, a leitura será do livro de contos Fotossíntese, da autora Sinara Foss. Em setembro leremos Urutau, de Larissa Brasil. Em outubro é a vez de Frankenstein, de Mary Shelley. Novembro terá a discussão de Medeia morta, da autora Claudia Lemes. E dezembro vem de Ana Paula Maia, com De cada quinhentos uma alma. (É, as nacionais contemporâneas estão vencendo no segundo semestre de 2024).
O Clube também conta com um subgrupo que lê e discute (em inglês) a penny dreadful The demon barber of Fleet Street. Começou de forma experimental, ontem foi o segundo encontro. Ainda estamos tímidas para gravar e disponibilizar.
É grátis. Só chegar. (Mais notícia boa).
Decidi finalizar com trecho do inesquecível samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense, que venceu a Beija-Flor neste quesito:
Liberdade, liberdade
Abre as asas sobre nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz.
Um abraço e até daqui a alguns dias.
ah, a lucidez.
espero poder te ver ao vivo nas proximas semanas pra gente falar dessa (nova velha) temporada de loucura da humanidade no sul do planeta.
Texto ótimo como sempre. Musical como sempre (mesmo quando não tem letra de música). Ratos e urubus, larguem a minha fantasia 🖤