Uma conversa sobre "Sina", de Márcio Benjamin, e Uma abinha a mais
O autor do livro do mês do Clube de Leitura Escuro Medo responde a três perguntas. E, a seguir, outro textinho reflexivo sobre expressão artística.
É claro que estávamos ansiosos para ler Sina, publicado em 2022 pela DarkSide Books. Alguns Escuromeders do Clube já conheciam a obra de Márcio Benjamin, e indicavam com entusiasmo. O livro venceu com folga a eleição para leitura do mês. A obra é uma compilação de contos selecionados e narrados por uma voz com a musicalidade do Rio Grande do Norte. É amedrontador e, ao mesmo tempo, delicioso. Como é possível?
Márcio Benjamin
I.B. Você escreve com a musicalidade e o sotaque do Rio Grande do Norte bem marcados. Para quem é de longe, entretanto, há uma identificação que nos transporta às histórias assustadoras que povoaram a infância e juventude. Essas lendas e histórias, inclusive as familiares, são fontes de um medo que acabamos trazendo para a vida adulta. Como essas narrativas influenciam na tua criação? Você foi um garoto medroso/fascinado por essas histórias/lendas?
M.B. Eu fui daquela geração muito intuitiva no que se refere à busca do que me interessava nessa linha, busquei nas pessoas que me contavam, em livros, enciclopédias, até porque não tínhamos o acesso à internet como temos hoje. Todas essas narrativas foram essenciais na construção da minha narração devido ao seu tom popular. Toda a minha obra é justamente pautada nas histórias que nos contam e acho que estas são universais e permanentes, independente de idade, sexo ou localização geográfica (risos). Apesar de se passarem no Nordeste, creio que essa minha região seja mais como um "não-lugar" um terreno de sonho, onde a ficção se funde à realidade nos desorientando, nos inebriando, ligando ainda mais pela necessidade de relatar essas histórias até porque são pautadas na oralidade e caso não sejam contadas, elas podem inclusive sumir pra sempre. Isso sim é terror (risos).
Olhe, fui as duas coisas. Na verdade ainda sou. Acho que a DarkSide vai rescindir meu contrato depois dessa (risos), mas sou um escritor de terror bastante medroso, até como um experimento dos meus próprios contos. Eu tenho que ser a primeira pessoa assustada ao lê-los para que tenham validade para ir adiante. Da mesma forma, mora em mim esse fascínio absoluto pelo sobrenatural, acima de tudo essa dúvida acerca do tema: pra mim não importa SE aconteceu de verdade, mas a possibilidade de ter acontecido já é suficiente para consolidar um belo conto. E sim. Fui e sou absolutamente encantado pela cultura popular e pela relação que as pessoas de qualquer idade têm com eles. A forma que eles amalgamam a vida de todos é simplesmente mágica. Como não se apaixonar?
Sina
I.B. Ainda falando em criação, gostaria de saber quais as expressões artísticas que te influenciaram a criar Sina. Pode ser música, teatro, audiovisual, exposição, instalação, etc.
M.B. Eita, peste, agora você foi em cima! (gargalhadas). Sou absolutamente apaixonado por música e todas as suas vertentes, de Puccini a Odair José. De Bob Marley a Marília Mendonça, eu respiro música e isso de certa forma influencia demais a minha obra. Meus pais eram aficionados por MPB, Jovem Guarda, Samba Canção e souberam absorver muito bem o que lhes interessava na música moderna, eram loucos por Cássia Eller e Zeca Baleiro, o que acabava por nos influenciar em casa também dado o contato constante com essas músicas. Em reflexo, também sou absolutamente louco por cinema, e a sétima arte, creio, influencia ainda mais a minha escrita, pois o tom do meu texto é bastante cinematográfico, gosto de pautar as minhas histórias em ação. Consequentemente acabei por desaguar no roteiro e estou estudando esse danado já tem uns bons anos. Um dia fico bom, não tá com a mulesta! (risos).
Agouro, Maldito sertão e Fome, publicações anteriores do autor
I.B. Há, hoje, um boom das narrativas de horror. Muitos acreditam que seja um sintoma dos tempos difíceis que atravessamos (crise climática, pandemia, ascensão de governos extremistas, iminência de uma guerra mundial). De que forma você pensa o horror como um farol, uma forma de expressão que tenta apontar os problemas que a população enfrenta? Ou, pelo contrário, você defende o horror mais como forma de entretenimento?
M.B. Todas as opções. Acho que tanto a arte em geral pode se posicionar de uma forma mais política, engajada, mas também pode ser algo absolutamente ligada ao entretenimento, depende do nosso estado de espírito ao encarar essa obra. Todo muito é muita gente e tudo é muita coisa. Acho que deve haver espaço para obras que objetivem as duas funções, aí vai caber ao leitor escolher o momento certo para se relacionar com o que quiser na hora. Temos obras absolutamente incríveis de ambos os lados e nos dois ao mesmo tempo.
O encontro para debate da obra Sina será no dia 29/7, sábado, às 17 horas, via Elos, com a presença do autor. Encontros gravados e posteriormente disponibilizados no meu canal YouTube (Irka Barrios). Aqui o link do último debate, sobre Canção para desabar do mundo, de Brian Evenson.
Uma abinha a mais
Resolvi inaugurar essa abinha porque o último assunto da newsletter gerou bastante interesse. É um espaço para debatermos as dores e delícias de escrever e publicar no Brasil de 2023. Mesmo trazendo temas polêmicos, espero criar um espaço de bons diálogos.
Vem!
O preço e o valor
A última, ou penúltima, ou antepenúltima treta de internet (Maria Rita real e o holograma de Elis Regina cantando Como os nossos pais em comemoração aos setenta anos da Volkswagen no Brasil) me fez pensar em diversas coisas. Uma delas foi a música que me fez escrever, dez anos atrás, meu primeiro romance (com problemas, por isso bem guardadinho).
Dos vinte e poucos aos trinta e muitos anos eu vivia sentada em cima de uma soberba gigantesca que me afirmava o tempo todo: puxa, que ideia maravilhosa. Ninguém, no mundo inteiro, tem melhores ideias do que você.
Eu não sabia de mercado editorial, nem das tantas coisas envolvidas numa publicação. O que me interessava era a expressão artística. E sabia que minha expressão se daria através do texto. A música inspiração veio de um filme que me marcou. Duas cenas mais específicas me marcaram. Vou descrevê-las, é claro. Sou escritora.
A primeira se passa na cozinha da casa. É enorme, casarão do tipo abandonadão, caindo aos pedaços. Um local com grande circulação de pessoas, artistas, onde, espera-se, haja liberdade para suas expressões. É a casa em que o psiquiatra da personagem central mantém seu consultório. Dois jovens estão na cozinha e, após uma conversa tensa, sobem na mesa empunhando cabos de vassoura. O voluma da música se eleva e os jovens, dançando, saltando, balançando os cabelos, perfuram o teto a vassouradas. O psiquiatra os flagra:
The ceiling was crushing us, o garoto diz.
So we made a skylight, a garota completa.
I think you bring much sense of humor into the kitchen, ele responde.
Na segunda cena, a personagem, uma mulher adulta que acaba de se descobrir poeta, insiste que precisa sair, tem um compromisso. Afronta os olhos incompreensivos do marido, faz o diabo para conseguir chegar a tempo. O compromisso é um sarau. A sala de hotel quase vazia, apenas uma pessoa na plateia. No corredor, a funcionária da limpeza aspirando o pó do carpete. O barulho se impondo aos versos.
São, para mim, boas formas de demonstrar como a expressão artística chega e os primeiros momentos de perplexidade, quando não se sabe bem o que fazer com ela. E mostram a força com que ela brota dentro de uma pessoa.
Banksy
Em 2018, num leilão da Sotheby’s, a obra Girl with balloon, de Banksy, foi parcialmente destruída logo após ser arrematada por um milhão de libras. Por mais que haja mil argumentos (a favor, contra) e o episódio tenha aumentado o valor da obra, que recebeu o novo título Love is in the bin, supõe-se a mensagem. Artista de rua, com identidade oculta, Banksy não concorda que uma obra de arte seja precificada.
Outra: anos atrás circulava uma anedota interessante. Numa entrevista, um cantor lírico acusava um sertanejo de não produzir música de qualidade. Sem se perder em questionamentos, o sertanejo mostrou a pulseira de ouro. “Pode ser, mas a minha música me dá isso”.
Não acho que, hoje, em 2023, tenhamos que ser polarizados. Mas há o que se pensar.
Em nova conversa com meu amigo Daniel Gruber [aliás, boas conversas, bem ponderadas], outras questões se fizeram presentes. O artístico é imprescindível. Mas não esqueçamos que o popular é quem abre os caminhos. Quem aprecia a música que chega a mais lares pode desenvolver, com o tempo, um ouvido mais experiente e se deixar seduzir por letras mais elaboradas ou melodias com mais recursos. A produção direcionada para consumo em massa pode gerar interesses específicos em consumidores
Compre Romero Britto, se gostar. Ou não compre. Saia na rua e aprecie a arte que se mostra gratuita. Visite museus e galerias [os de verdade não cobram ingresso, ou cobram contribuição espontânea]. Isso, é óbvio, porque há investimento público (o vídeo a seguir também fala da importância do investimento).
Fora isso, bora nos livrar da estranha mania de achar que o nosso gosto pessoal se sobrepõe. [De novo, a soberba].
Voltando ao comercial da Volkswagen, assisti a um vídeo que problematiza bem melhor do que as minhas vãs tentativas.
Ah, e nem entrei noutra aba desse assunto, que meu amigo Sergio Velázquez me fez retomar: o que o morto pensaria a respeito dos vivos usando sua imagem para marketing? A primeira reação é dar um grito de pavor. Depois, pensando melhor, acho que a gente dá valor demais ao sentido de nossa existência particular, ou o que ficará de memória disso tudo.
Me veio a rainha Rita Lee: “tudo vira bosta”.
Tem mais: ainda sobre o assunto, essa super resenha, recém-saída do forno, que Ismael Chaves escreveu sobre o livro mais recente de Nikelen Witter. Silêncios infinitos saiu pela Editora Draco. Exemplares, por enquanto, com a autora.
E tem mais: a newsletter da Tali Grass conversa com a minha abinha. Fala de seu impulso criativo inicial, que veio junto com incertezas típicas de uma mulher escritora. E cita Virginia Woolf, Um teto todo seu.
E mais: a newsletter da Vanessa Guedes conversa com a que publiquei no dia 5 e traz mais questões relativas à competição cruel que as redes sociais nos impõem.
Aliás, assinem as news da Vanessa e da Tali. São das minhas favoritas.
O que vem por aí: escrevi a apresentação para o novo livro de contos da autora Sinara Foss. Fotossíntese e outros processos de sobrevivência sai pela editora GOG.
E na próxima newsletter: entrevista com Verena Cavalcante, autora de Larva, O berro do bode e Inventário de Predadores Domésticos, que nós, Escuromeders, discutimos em janeiro de 2023. Uma abinha falando de Indiana Jones e a apropriação (ou tomada, na mão grande) das obras de arte de países descentralizados.
Eu quase ia esquecendo de colar aqui o filme e a música que inspiraram a escrita de meu primeiro romance. Running with scissors é um filme de 2008 e conta a história do escritor norte-americano Augusten Burroughs. E sim, o filme traz inúmeras metáforas referentes ao gesto criativo, além de Annete Bening atuando no papel da poeta mãe de Augusten. Vale muito.