De que matéria as pessoas são feitas?
Algumas palavras sobre o desastre. Na sessão Uma abinha a mais, detalhes sobre a leitura de Suja, de Andréa Berriell que aconteceu dia 1º/5
De que matéria as pessoas são feitas?
Faço essa pergunta a mim mesma desde o início da tragédia que atingiu o Rio Grande do Sul. Vivo (ou vivia) em Canoas, cidade que recebeu esse nome graças a seu território alagadiço. Me mudei para lá por motivos simples: (1) montei meu negócio e (2) me apaixonei. Aliei as duas coisas e adquiri, junto com meu companheiro, a casa onde vivíamos até a primeira sexta-feira do mês de maio.
Há dezoito anos, nossa casa é o nosso refúgio. O entorno não é lá muito bonito, não oferece opções de lazer ou atividades culturais. Mas é o lugar que desde o início me acolheu. Foi ali que me condicionei a chamar os bairros pelos artigos definidos contrários: quando nos referimos ao bairro Rio Branco, falamos A Rio Branco. O mesmo acontece com A Mathias Velho. Para nos referirmos ao Fátima, usamos o artigo masculino: você mora nO Fátima? Não sei explicar o porquê, só me habituei e segui a tradição. Ninguém chama o centro de Canoas de centro. Quando querem contar que estiveram por lá, as pessoas dizem “estive em Canoas”. Essa é mais fácil de entender, é na Estação Canoas que os usuários do trensurb desembarcam quando precisam acessar o centro da cidade.
Eu vivo duas estações aquém, nA Rio Branco, bairro que se acessa através da Estação Niteroi, a primeira após a divisa com Porto Alegre.
Durante mais de vinte anos atravessei a ponte sobre o Gravataí, um rio de margens estreitas que raramente vi transbordar.
Sabíamos que o bairro foi construído sobre um aterro. No passado, bem antes do trem, tudo ali era lavoura de arroz. E até o dia três de maio de 2024, meus pesadelos relacionados a perder a casa tinham a ver com uma cratera que se abria no meio de meu condomínio e engolia as construções. Conhecendo o Gravataí de longa data, nunca cogitei a inundação.
Esqueci de contar, minhas vias respiratórias não suportam a umidade. O deserto, em meu imaginário, seria o lar perfeito. Mas a vida da gente é essa coisa louca e eu havia me adaptado, até que bastante bem, à umidade dA Rio Branco.
“Tia, parece que estamos naquele filme O impossível”, meu sobrinho disse no sábado, às seis da manhã, enquanto tentávamos vencer uma correnteza que atingia os nossos joelhos. O apartamento da minha irmã foi meu segundo refúgio após eu deixar minha casa na sexta às quatro da tarde. Não acreditávamos que a água atingiria O Fátima, bairro mais alto que A Rio Branco. Não só atingiu como veio com força. Com seu irmão de nove anos nas costas, meu sobrinho de quinze seguia na frente, eu e as mochilas no meio, e minha irmã (a mãe dos meninos) atrás auxiliando um homem que não sabia o que fazer com sua moto. Salvamos nossos corpos, as bagagens e a moto. Depois fomos ao encontro de meu companheiro, resgatado durante a manhã pelo barco da defesa civil. Nos momentos de maior perplexidade perdemos um pouco da razão, e acho que ele alimentou a ilusão de que sua presença dentro de nossa casa frearia a força do rio. Não deu, logo após a meia-noite de sábado, os ralos começaram a expulsar a água que também forçava entrada pelos vãos das portas.
De que matéria as pessoas são feitas? Desde que presenciei tantas histórias de perdas, penso no quanto estamos condicionadas a linkar satisfação (ou, vá lá, felicidade – por mais elástico que seja o conceito da felicidade) ao acúmulo de bens. Não sou hipócrita, é claro que estou sofrendo. Mas ando tentando compreender o apego e o sofrimento que ele gera. Nas duas tentativas de voltar para casa, fui vencida pela altura da cheia. Tive que me consolar com o sofrimento de homens mais preocupados do que eu. Eles sofriam com o medo de que assaltantes saqueassem o que sobrou de suas casas. Minha reação óbvia foi desdenhar desse apego. Não via o menor sentido no roubo de bens estragados ou quase. Na segunda viagem até Canoas, quando tentei ao menos ter um vislumbre da minha casa, compreendi a motivação daqueles homens. Tem a ver com estarmos enraizados no local em que nos sentimos seguros. Talvez por isso a urgência tão grande em ver minha casa, saber que suas estruturas se mantiveram, que nenhum buraco a engoliu, e que a água, assim que secasse, me devolveria o que penso ser meu.
Na madrugada de sábado, enquanto enfiávamos as roupas dentro das mochilas, me permiti afundar o pé na filosofia de boteco. Comentei com meus sobrinhos que sempre há um aprendizado, e aquela situação nos ensinava a estarmos preparados a deixar tudo para trás a qualquer momento. Depois me arrependi, não queria traumatizar crianças que já estavam traumatizadas o suficiente. Eu luto por um mundo seguro e justo, um futuro bom para eles. O caso é que não ando a pessoa mais otimista quanto ao futuro.
Dois dias atrás contávamos com o sol e a água que havia baixado quase um metro (essa parte da frente são lojas comerciais. As casas — sobrados geminados — ficam em terreno mais elevado)
A Julia Dantas é uma escritora que eu admiro demais. Ela iniciou essa newsletter que conta um pouquinho sobre a experiência dela com a enchente. Surpreendi-me com muitas similaridades. Além disso, ler a Julia é sempre um prazer. É correto afirmar que o texto da Julia me encorajou a publicar esse. mariam pessah o leu na noite de sábado durante o Sarau das Minas, e a experiência foi uma ilha de paz em meio à enxurrada. (Não consigo buscar outras analogias, me desculpem).
A Ana Rüsche publicou, em sua newsletter, uma fala bem interessante da Nikelen Witter.
A Vanessa Guedes organizou um aulão de Escrita Criativa e doará os recursos para iniciativas de solidariedade aos atingidos pela enchente no RS. Muita gente talentosa aceitou participar, e nós, aqui, agradecemos. O aulão rolou ontem, mas é possível assistir à gravação.
Você encontra, no Instagram de inúmeros amigos e amigas, o contato de centros confiáveis de doação. Recomendo o Instagram do Fred Linardi.
A DarkSide Books, minha atual editora, compartilhou (também no Instagram) campanha de apoio às pequenas editoras do RS. Caos & Letras, editora de Lauren, também me propôs participação maior nas vendas. Outros perfis, como o da Dayhara Martins, estão compartilhando formas de ajudar pessoas físicas. Compre e divulgue os livros das autoras Julia Dantas, Nathália Protázio, Carina Luft, Talita Grass, Ana dos Santos e tantas outras. Se interessar, compre os meus.
Muitas pessoas perguntam por que não deixamos nossas casas a tempo, há uma explicação para isso, e ela é política. Tem a ver com o descaso das autoridades, a falta de comunicação clara e as detestáveis fake news. Para quem quer entender o tamanho do desastre e algumas explicações sobre a bacia hidrográfica e a topografia local, bem como os registros históricos, encontrei esse vídeo que está super explicativo.
Amigas e amigos da literatura e fora dela me escreveram mensagens carinhosas e de coragem. Guardo cada uma/um no coração.
Preciso citar a Gabriela Leal, amiga querida, escritora e conhecedora de procedimentos de enchentes (Gabi mora em Lajeado e, apesar de viver longe de área de risco, é voluntária incansável das enchentes do ano passado e deste ano).
Provavelmente estou esquecendo de agradecer e recomendar perfis e pessoas, peço desculpas por isso, o furacão ainda não passou, estamos segurando as paredes.
Imagem que eu enviava para tranquilizar amigas e amigos preocupadas, cerca de dez dias atrás
Uma abinha a mais
Essa seção é reservada para textos, e a parte inicial da newsletter para a leitura do mês. No dia 1º/5 nos reunimos para debater Suja, de Andréa Berriell. Como sempre, foi um encontro muito bom, e você pode assistir à gravação aqui.
Como esperado, teremos que adiar o encontro que discutirá Frankenstein, de Mary Shelley (indicamos a edição publicada pela editora Sebo Clepsidra).
Volto em breve com notícias, por enquanto precisamos que a água baixe e a chuva deixe o estado.
Obrigada mais uma vez.
Melhoras por aí
Obrigada pela edição. Apesar da tristeza e do desamparo, sempre ajuda em algo no coração essas leituras. Um abraço apertado